Hora de apertar o cinto

Lá fora uma neblina densa apagava tudo ao derredor. Mal se via a um tiro de espingarda de distância.

Era outono em sua metade. Choveu a noite passada.

Uma chuva extemporânea. Já que não era comum chover naquele quase inverno.

Junho estava em seu começo.

Fazia um frio leve. Mais tarde, com o acordar do sol, com a luminosidade que lhe era peculiar, o calor despontasse.

Chiquinho acordou a hora costumeira. Era antes das cinco da manhã. Mais um dia na vida daquele homem bom. Mãos caludas, tez tostada pelo sol.

Chiquinho vivia na roça. Um lugarejo esquecido por quase todos. Quem por ali passava retornava logo. Decerto o incauto se equivocara do caminho. Também, era cada encruzilhada de fazer qualquer bússola rodopiar de nervosa. A roça em que                 Chiquinho morava era herança de família. E ele, trabalhador contumaz, conseguiu fazer daquela propriedade minúscula algo rentável. Graças ao seu trabalho constante.  Ao seu mourejar continuado. Ao suor derramado dia após dia. Tudo isso nos seus muitos anos de dedicação continuada.

Chiquinho vivia da renda do leite e de alguns negocinhos que fazia. Ora o preço do leite ia às alturas ora despencava morro abaixo. Mas como vivia sozinho o homem do campo satisfazia-se com pouco. E era feliz e bem o sabia.

Naquele ano atípico, quando a crise mostrava os dentes afiados, Chiquinho sentiu na pele as dificuldades em manter aquela pequena propriedade.

A renda  do leite não dava para as despesas. A roça de milho não teve a chuva que merecia. A pastaria amarelou. A vacada emagreceu.

Eis que chegou o mês de junho. Quase inverno. Mesmo assim Chiquinho persistia na lida. Levantava ao cantar do galo. Ia ao curral antes das cinco da manhã. Assentado a um banquinho tosco tirava mais de duzentos litros de leite frio. O caminhão leiteiro passava de dois em dois dias. Isso quando a estrada permitia o trânsito de veículos pesados. Quando o barro enlameava a estrada lá ia o pobre Chiquinho procurar a mula de carga. E graças a ela o leite chegava ao ponto onde o caminhão recolhia a produção de dois dias.

Naquele ano de dois mil e dezenove, ano atípico, assim que o meio dele chegou, Chiquinho percebeu o quanto devia ao banco onde pediu um empréstimo para plantar a roça de milho.

Numa visita ao gerente, depois de esperar quase meio dia para ser atendido, foi informado que a soma que devia foi multiplicada por mais de cem. Graças aos juros escorchantes. Que multiplicaram do débito por uma quantia de fazer assombro ao bom pagador.

Chiquinho dali saiu pensando na vida. O que fazer  em face de tal prejuízo? A única receita que tinha era oriunda da renda do leite. E naquela entressafra a produção despencou de tal forma que não se sabe até onde iria a tal crise.

Amuado, preocupado, Chiquinho voltou à roça sem saber o que fazer. Acabou por vender metade das vacas. Mas, o tal comprador, um velhaco  com fama de mau pagador, acabou lhe passando um cheque que bateu e voltou. Sem fundos, diga-se de passagem.

O banco mandava recados malcriados ao infeliz Chiquinho. Se ele não pagasse a dívida em pouco tempo perderia a propriedade.

Para que isso não acontecesse Chiquinho teria de se virar nos trinta. Apertar o cinto seria a primeira providência. Trabalhar mais não podia. Só que o velho Chiquinho, desbarrigado, quase não tinha barriga. E cinto não usava.

Numa tarde, sol a pino, Chiquinho recebeu a visita do oficial de justiça. Ele entregou a intimação que deveria se mudar em dois  dias. A contar de hoje.

Chiquinho, olhos rasos d’água, naquela noite sombria não pregou os olhos. Passou em claro as oito horas daquela noite escura. Acordou, sem ter dormido, antes das cinco da manhã.

Foi ao curral. Onde já o esperavam duas dúzias de vacas leiteiras. Olhando para elas, com aquele olhar de peixe morto, Chiquinho, sabendo que deveria apertar o cinto, mas acontece que não usava cinto, acabou de cueca a mostra.

Dizem, nos arrabaldes, que o pobre Chiquinho até hoje perambula pela região com as calças arreadas. Nem apertando o cinto conseguiu resolver a penúria da situação.

E quantos Chiquinhos existem por aí? Eu  conheço uma penca deles. Na esperança que o país encontre seu rumo. Oxalá em breve. Torço eu.

 

 

Deixe uma resposta