Ainda há quem reclame

O dia amanheceu ensolarado e frio naquele fim de outono.

Nenhuminha nuvem no céu. O sol brilhava em intensidade máxima. A temperatura oscilava entre seis e sete graus.

A pastaria acordou recoberta por uma camada de gelo fino. Tal era a claridade que o sol ofuscava a retina do madrugão Zé da Mula.

Zé morava, desde quando nasceu, numa rocinha perdida nos rincões das Minas Gerais, num lugar tão longínquo que para ir à cidade mais perto gastava duas horas e meia montado na sua mula de estimação. E como ele apreciava a tal de Doroteia. Sem ela não se sabe o que seria do pobre Zé. Diziam, nas cercanias, que Doroteia em verdade era a mulher do Zé. Tal o carinho que ambos nutriam um pelo outro.

Zé acordava ao nascer do sol. Morava solitário numa casinha pequenina. Caiada de branco, janelas de madeira bastante desbotadas, carecendo de tinta nova. Mas quem disse que tempo Zé dispunha? Para ele o trabalho era coisa séria. Acordava cedo. Tomava um café requentado na trempe do fogão ao lenha. Passava uma água fria na cara sonolenta. Penteava o que restava dos cabelos. Já que uma calva incipiente mostrava seu futuro certo de uma calvície completa e reluzente.

Zé da Mula, até aquela idade, completaria cinquenta anos no próximo sábado, nunca teve a felicidade de se consorciar a nenhuma mulher. Teve alguns casos. Mas todos eles tiveram curta duração.

Qual rapariga, em juízo perfeito, se atreveria a se unir a um homem, sem ter onde cair morto, ainda por cima desprovido de formosura, vivendo à custa de duas dúzias de vacas baldeiras, cuja única riqueza era a saúde que ainda assoprava nas suas costas rijas e trabalhadeiras?

Dizem, nos arrabaldes, que Zé da Mula costuma frequentar um puteiro no lugarejo perto. Dali saía trocando as pernas. No entanto nenhuma dama da noite se rendia aos seus encantos. Zé era mão de vaca como ele só. Embora em verdade quase nada lhe sobrasse da féria do leite. Uma quantia irrisória que mal dava para sua sobrevivência.

No entanto Zé era feliz e bem o sabia. Vivia distribuindo sorrisos por onde passava.

A sua rotina bem traçada consistia em ordenhar as vacas. Alimentá-las depois da ordenha. Remendar cercas de arame farpado.  Roçar a pastaria no tempo do inverno. Tudo isso sem reclamar.

Às dez e meia comia tudo que via pela frente.  As sobras do jantar de ontem faziam parte do seu cardápio. Tomava um cafezinho para espantar o sono. Antes das duas da tarde recomeçava tudo de novo.

Somente ao despertar da lua, antes das sete da noite, Zé da Mula caía no sono. Para acordar ao cantar do galo.

Um dia Zé foi à cidade para comprar mantimentos. Dispunha de cem reais no bolso de trás da calça desbotada. Pagou tudo em espécie. Nada sobrou para contar a história.

Deixou a mula amarrada a um poste. Assim que foi ao lugar onde tinha deixado o animal teve um baita susto. Alguém, um safado vigarista qualquer, levou a sua mula de estimação.

Foi dar queixa numa delegacia. Lavrou a ocorrência. Mas como não tinha documentos de posse da mula querida ficou por isso mesmo. Jamais reencontrou seu animal.

Zé não desanimou. Acostumado aos atropelos da vida o homem da roça continuou na sua empreitada costumeira.

E que saudades sentia da sua mula marchadeira.

Um dia, desfeito o inverno, veio o verão. A chuva caía em gotas gordas por todo lado. Uma enchente lotou o ribeirão.

Uma das vacas, a melhor do plantel, acabou atolada até o pescoço num brejo formado antes do curral. Zé, à custa de muito esforço conseguiu salvar o animal. Mas a Braúna nunca mais foi à mesma. Acabou sendo sacrificada e foi vendida ao açougue como carne de boi.

Zé continuava na sua faina costumeira. Sempre sorridente. De bem com a vida.

Na manhã de um domingo, na semana que passou, um seu parente, oriundo da cidade, foi fazer-lhe uma visita.

Antenor, desempregado, queixava-se de tudo um pouco. Da carestia da vida. Do preço do gás de cozinha. Dos combustíveis sempre em alta. Da crise que grassava como erva daninha.

Ele chegou num carro último tipo. Trajava roupas da moda. Vivia, naqueles tempos difíceis, do seguro desemprego.

Depois de clamar da vida, queixando-se de quase tudo, Zé da Mula escutou tudo sem dar opinião.

Antenor despediu-se do primo sem o menor entusiasmo. Com vários queixumes a engrossar a sua lista.

Zé da Mula, sem querer desgostar o primo, antes da sua partida veio com esta exclamação: “primo. Tudo que você me contou já passei por coisa pior. Agora, depois de aprender com a vida que nem tudo são flores, e nada posso fazer para mudar o mundo, vivo o dia de hoje feliz pelas graças que Deus me deu. Se reclamação conseguisse mudar a marcha da infelicidade o que seria de mim? Até hoje acordo com a mesma disposição de sempre. Mesmo tendo passado por tudo que passei”.

O primo de Zé da Mula voltou à cidade. Não sei se mais animado.

Já eu, agora mais aliviado, neste começo de semana, não tenho do que reclamar. Tudo que tenho conquistado foi graças ao meu esforço. Sou feliz mesmo a mercê das contrariedades. Ontem foi um dia nublado. Hoje desponta o sol. E como é bom viver…

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