Fim de um sonho

Quem ainda não sonhou e não viu o mesmo sonho esboroar-se no tempo? Quem ainda não amou e não teve o amor desfeito com o passar dos anos?

Foi o que aconteceu com aquele menino franzino, na roça, que aos doze anos sonhava um dia ser médico. Bem sabia ele das dificuldades que teria de enfrentar pelo caminho.

Felizbino nasceu em família modesta. Gente trabalhadora, operosa, que vivia para o trabalho, sem estudos, que mal terminara o segundo grau.

O garoto esforçado, filho único, ajudava ao pai nas tarefas campesinas. A mãe, dona Eulália, cuidava das tarefas da casa.

Acordava ao cantar do galo. Ia logo ao curral. Era ele quem apartava os bezerrinhos depois da ordenha. E depois, quando o tempo sobrava ia à escolinha rural. Situada acima de um morro, numa distância acima de duas léguas.

Felizbino era um bom aluno. Elogiado pelas professoras, que viam naquele menino um futuro promissor.

Pena que no ano seguinte a escolinha se mudou pra cidade. Foi o primeiro percalço que o garoto Felizbino teve de enfrentar. Não podia interromper os estudos. Como fazer para conseguir a tão sonhada meta de se tornar doutor?

Na roça a luta continuava. O garoto dedicado continuava a ajudar os pais.

Aos quinze anos Felizbino decidiu se mudar pra cidade. Com a permissão dos pais, que sabiam o quanto o menino desejava ser médico, tudo fizeram para ajudar ao filho.

E o jovenzinho um dia partiu. Contava com apenas dezesseis anos quando o fato aconteceu.

Naquela malinha tosca o garoto levou além das roupas de uso diário as saudades da roca que amava tanto. Um dia iria voltar. Foi a promessa que fez ao pai.

Na cidade grande, assim que chegou à rodoviária, teve a primeira decepção. Alguns garotos de vida fácil, ao verem aquela criança desembarcar do ônibus, levaram-lhe a mala. Apenas e tão somente para ver o desencanto brilhar nos olhos daquele pobre menino, que mal sabia da maldade humana.

Mesmo assim Felizbino foi adiante. Como tinha um tio na cidade era ali que procurava se acomodar. Foi recebido como se fosse da família. Com todo carinho manifesto por um primo longe.

Uma semana se passou. O garoto foi matriculado numa escola estadual. De bom conceito. Sofreu bullying por sua fala atravessada. Por seus gestos pouco comuns naquele lugar.

Mesmo assim Felizbino perseverou. Afinal seus sonhos pareciam que em breve iriam se materializar.

Venceu os primeiros anos com muita dedicação e esforço. E conseguiu vencer a primeira etapa de sua nova vida de estudante em busca da formação profissional.

Mas novos obstáculos se interpuseram na vida do jovenzinho. Concluiu o ensino médio com boas notas. Daí ao ingresso numa faculdade de medicina era outro caminho. A concorrência era ferrenha. Felizbino, vindo da roça, tinha como adversários jovens bem nascidos.

Na primeira tentativa não logrou êxito. Ficou como excedente. Mas perseverou em busca de seu sonho. Felizbino não desanimou na primeira derrota. Era jovem ainda. Tinha de continuar até um dia se tornar doutor.

Aos vinte anos completos Felizbino decidiu trabalhar. Foi empregado numa padaria com ajudante de padeiro. Madrugava, acordava antes do despertar do dia, e ia até a padaria.

Foram anos difíceis na vida de Felizbino.

Aos vinte e cinco anos afinal o jovem teve sucesso no vestibular. Foi aprovado entre os primeiros.

Seria a concretização dos seus sonhos? Por que não? Pensava ele.

No primeiro ano do curso mais um obstáculo na vida do jovem postulante a doutor. A escola era privada. E como custavam caro as mensalidades. E Felizbino tinha de trabalhar para continuar os estudos. Mas o curso de medicina lhe ocupava todo o tempo. E o trabalho em meio expediente não conciliava com a faculdade. Ou estudava o trabalhava. O que fazer?

No segundo ano do curso Felizbino teve de interromper mais uma vez seu sonho. A mensalidade cada vez mais em atraso era um empecilho em seu caminho de se tonar doutor. Mais uma vez Felizbino teve de postergar seu sonho.

Até quando? Não sabia ele. Dois anos se passaram desde então.

Ainda naquela padaria, agora com padeiro experimentado, Felizbino percebeu que a medicina era um sonho distante.

Naquele outono completou trinta anos. Já era considerado velho para continuar os estudos. Quantos anos mais teria de esperar? Indefinidamente, pensava ele.

O tempo passava inclemente. E o não mais jovem Felizbino pouco a pouco viu seu sonho ir por água abaixo.

Aos quarenta caiu enfermo. Uma grave doença degenerativa se apoderou daquele corpo franzino.

Foi ontem que atendi aquele senhor numa unidade de saúde qualquer. Ele entrou numa cadeira de rodas.

Trazia nos olhos a desesperança de um dia ser como eu. Conversamos por um par de minutos. Foi uma conversa breve e triste. Despedimo-nos como velhos amigos.

Felizbino, alquebrado, infeliz, me asseverou que um dia ainda seria médico. Tomara não seja o fim do seu sonho. Naquele instante, fugaz, foi que pensei no quanto os sonhos desfeitos doem dentro da gente. Com um punhal ensartado no peito. Como dói.

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