Ainda bem

Hoje amanheceu com uma névoa densa encobrindo o horizonte.

Mais tarde novamente o sol deve brilhar. As sextas-feiras me permitem ver o quanto a semana passa veloz. Maio entrou de repente. Deixando abril para trás.

Mais alguns meses o ano termina. Entra ano, despede-se outro, e mais uma vez observamos  um ano a mais.

Quantos anos mais nos restam? Melhor nem pensar. Desde que seja com a saúde inabalada, tomara muitos janeiros nos recebam de braços abertos.

Num dia destes, durante um atendimento numa unidade de saúde, entrou sala adentro uma pobre consultante. Ela exibia na face crispada pelo tempo toda a angústia de ter um filho doente.

Assentou-se à cadeira defronte a mim. E educadamente contou parte de sua história.

O filho era dependente de drogas. Vivia pelos cantos, em atitudes contraditórias aos ensinamentos da pobre mãe, de olhos baços, vazios, quase um vegetal, uma árvore morta a espera de um lenhador que pusesse fim ao seu martírio.

Quando lhe faltava dinheiro para comprar drogas o tal ficava violento. Quebrava tudo ao derredor. Por vezes a infeliz progenitora era agredida. Mas logo perdoava ao filho. Tudo devido ao amor de mãe.

Ela deixou a minha sala com a receita de tarja preta. Talvez aquele fármaco a fizesse menos ansiosa. Acredito que não.

Foi quando pensei na minha vida. Feliz, dentro do possível. Nascido de pais amantíssimos. Bem estruturados. Que puderam encaminhar os filhos pelo caminho do bem.

Noutro dia, ao passar pela porta de um banco, assisti a outra cena que me fez pensar.

Um pedinte esmolava na porta daquele banco. Maltrapilho, franzino, com certeza usuário de drogas pesadas. Não tinha nenhuma moeda a dar a ele. Mesmo assim ele me agradeceu a gentileza de ter parado alguns minutos a conversar com ele. Desejei-lhe boa sorte.  Que a vida fosse menos triste com sua pessoa. Por fim, como tinha pressa, prometi que da próxima vez traria alguma coisa a dar a ele. Promessa cumprida dois dias depois. Uma nota de dez reais acendeu, em seus olhos, a esperança de uma refeição mais condizente a sua fome. Era pouco. Mas aquela importância foi dada com a melhor das intenções.

Ainda bem que vivo feliz mesmo ao sabor das diferenças que tenho visto nas minhas andanças por este país tão desigual. Melhor seria se as diferenças não fossem tão marcantes. Se o fosso social não fosse tão acachapante. Se em verdade todos fossem iguais perante a lei.

Ainda bem que tenho uma família onde posso me apoiar nas horas difíceis. E quem não a tem?

No caso daquela senhora, atendida numa unidade de saúde qualquer, a qual padece por ter um filho drogado, quem a irá socorrer nos momentos inoportunos? Quem a irá consolar naquelas horas lúgubres? Quando o filho a agredir nos momentos de insanidade?

Ainda bem que tenho filhos bem encaminhados na vida. E netos lindos e saudáveis. E quantos casos de doenças incuráveis perambulam por aí? Quantos deficientes físicos se arrastam em cadeiras de rodas. Graças a doenças incapacitantes.

Ainda bem que tenho saúde a dar aos outros. Aos quase setenta não me lembro de quando tive de ir ao leito. As enfermidades têm sido ausentes da minha vida até o presente momento. Só tenho a agradecer esta dádiva vinda dos céus.

Ainda bem que posso passar o resto dos meus dias olhando a luz do sol. E quem não enxerga. Foi privado a visão. O que seria de mim caso fosse privado da visão? Como iria encarar a vida na escuridão total? Não sei. Nem sequer imagino.

Ainda bem que posso dar algum consolo aos que sofrem. Como médico ainda posso fazer tantas coisas. Tomara ainda continue por muito tempo a emprestar o meu saber em prol dos mais necessitados. Que me permitam ter saúde e discernimento para exercer a minha arte de escrever todas as manhãs.

Ainda bem que a inspiração ainda me consome. O que seria de mim caso a perdesse num dia qualquer.

Ainda bem que ainda posso caminhar com passos firmes. Correr quando me apetece. Nadar quando a ocasião enseja.

Ainda bem que posso desejar a vocês, amigos de longa data, que continuem a ter saúde. E desejo genuíno de viverem felizes. Até quando?  Até o dia quando Deus os chamar para junto dele.

Ainda bem que esta data está longe de acontecer. Tomara muitos anos ainda. Com saúde e paz. E o que desejo a todos vocês.

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