Que eu consiga

Sempre corri atrás de alguns objetivos.

Primeiro, nem sei se foi por livre desejo, deixar o útero de minha mãe.

A seguir, uma vez nascido, sorrindo ao reconhecer meus pais, aqueles que me presentearam com a vida, poder um dia de bebezinho chorão passar a ser um menino esperto e pronto a crescer mais um pouquinho. De jovem deixar a infância de lado. Mal sabia que o período mais saboroso da vida é a infância. Somente mais tarde descobri meu logro. Mas já era tarde demais.

Uma vez adulto, já inserido na profissão escolhida, não tive arrependimento da escolha feita. Ela iria me acompanhar vida afora. Até que me despeça dela. Num dia do qual ainda não desejo saber qual será. Tomara ainda longe dos meus quase setenta anos. Desde que a saúde não me abandone. E ainda consiga enxergar o mundo com os mesmos olhos de uma criança. Como os dos meus três netos ainda novinhos.

Hoje não tenho do que me queixar da vida. Creio ter conseguido muito mais do que mereça. Vida feita, família criada, netos risonhos e de rico futuro, não penso em mais nada a não ser pode viver alguns anos mais ao lado deles todos.

Que eu consiga acompanhá-los em suas trajetórias pelo mundo. Que possa orientá-los a falta de seus pais. Quando eles não estiverem presentes que eu possa brincar com eles. Fazer de conta que tenho as suas idades. E me esqueça de que a velhice me apanhou pelos cotovelos.

Que eu consiga, nesta fase ainda produtiva de minha vida, levá-los a minha pequena fazenda. Para que eles, junto comigo, aprendam que o singelo é que vale a pena. E não cresçam pensando que tudo na vida deve ser feito com desdém as coisas simples que cada vez mais aprendi a admirar, nestes meus muitos anos de experiência.

Que eu consiga fazer de todos eles homens de bem. Que cresçam aprendendo a olhar o mundo com olhos de fascínio, e ao mesmo tempo de respeito às coisas que merecem ser cultivadas antes que desapareçam.

Que eu consiga, enquanto não me despedir do mundo, olhar ao derredor sem me imiscuir na maldade que infelizmente ainda grassa neste planeta tão lindo, o qual cada vez mais tentam tintá-lo com as cores nauseabundas da podridão do esgoto que corre a céu aberto.

Que eu consiga, enquanto tiver forças para viver, ir contra aqueles que pensam que tudo vale a pena. Desde que não seja ás custas do sofrimento dos mais pobres. Que olham a miséria com olhos benevolentes.

Que eu tenha forças para remar contra a correnteza de imundície e corrupção que infesta o nosso país. Que não encontra seu rumo. E cada vez mais se distancia das coisas boas que deveriam ser cultivadas. E no entanto são ignoradas mais e mais.

Caso não seja capaz de ir contra os desmandos administrativos, inserir saúde onde a doença prevalece, que pelo menos não seja impedido de lutar contra as adversidades. De gritar contra as iniquidades. De pelejar contra as desigualdades que cada vez mais imperam neste país continente.

Bem sei que pouco posso fazer para mudar o mundo. Quem sou eu?

Mas, pelo menos, que consiga fazer a minha parte. Como médico, como pessoa, como avô, como cidadão atuante em nossa sociedade.

E caso não conseguir fazer nem undécimo do pretendido, que pelo menos meu escrito possa contaminar quem passa os olhos neste texto de agora cedo. Neste mês de abril. Neste dia dezesseis.

Que eu consiga fazer de vocês cúmplices e parceiros dos meus desejos. De mudar alguma coisa. Nem que seja uma parcela ínfima de tudo que tenho alardeado. Meu consolo é que um dia, não se sabe quando, quando não mais estiver por aqui, tudo que escrevi, de coração aberto, seja convertido em realidade. E ultrapasse os sonhos.

Que eu consiga tornar esta utopia em realidade.

Deixe uma resposta