Chega-se a um ponto

Um dia destes, não sei precisar quando foi, cruzei com um sepultamento.

Era um caixão escuro, ladeado de alças douradas, de boa madeira, coberto de coroas de flores de várias cores.

Não resisti, naquele momento solene, e acabei perguntando a um dos circunstantes quem era o defunto.

Ele me respondeu, compenetrado, decerto seria um parente perto, que o falecido era um senhor, por volta dos seus sessenta anos, que acabou pondo fim à vida num momento de pura insanidade. Ele não resistiu, segundo aquele depoimento, às pressões que a vida a ele impunha, de tempos pra agora.

Deixei o féretro a passos lentos. Lucubrando sobre tudo que tenho passado. Desde jovem até aquele instante.

De fato a vida por vezes nos cobra além das nossas forças. Uma vez jovens, ávidos por ganhar o mundo, temos disposição o bastante para encarar de frente todas as agruras que nos são ofertadas. Mas, com o desenrolar dos anos, a rotina enfadonha se debruça sobre nós, quase nos asfixiando como se fosse uma gravata apertada a nos enforcar o pescoço. E, nesta fase da nossa vida acabamos nos dobrando às vicissitudes do momento.

Aquele senhor, por quem passei durante o seu sepultamento, decerto seria mais um exemplo dos tantos que tenho assistido, nesta minha caminhada vida afora.

Em verdade nos tornamos reféns das cobranças que idade nos traz.

E o cansaço se apodera de nosso corpo alquebrado, que, a exemplo de um bambu, se dobra, enverga, mas não quebra mercê das tempestades.

Chegamos a um ponto da vida, cada um tem sua medida, que as intempéries nas quais nos metemos acabam se transformando em terremotos insuportáveis. As forças que nos restam não dão conta de enfrentar os ditames da sociedade.

As cobranças são por demais pesadas. O trabalho, em certos ambientes, se torna, além de maçante, uma carga pesada demais sobre nossos ombros frágeis.

Os compromissos nos asfixiam. A falta de rendimento exige demais de certos indivíduos. O mundo hostil nos amedronta. A azáfama das ruas nos ensurdece.

Chegamos a um ponto que nada mais nos resta a não ser nos despedirmos do mundo. Foi certamente o que aconteceu aquele senhor sepultado naquela tarde cinzenta.

Depois de trabalhar tanto, de esforçarmo-nos no dia após dia, de ter de engolir desafetos e desaforos, somos levados a um cansaço que nos tolhe o discernimento. A partir de então, náufragos perdidos num mar revolto, acabamos afundando a nossa alegria naquele mar imenso. Num turbilhão de ressentimentos. Na amargura do não poder estender a mão aqueles que precisam de ajuda. Cada um per si. Perdidos neste mundão enorme, submersos nesta montanha tão alta, que não permite ver o seu cume.

Chegamos a um ponto da vida, ainda bem que ainda não me enxerguei neste momento, que tudo que foi conquistado perde o valor. Todos os bens materiais, as posses amealhadas com tanto suor, vão tudo pelo ralo. Disputados a ferro e fogo por quem nos sucede. E nós, que pelejamos tanto, acabamos como cartas fora do baralho. Neste emaranhado tormentoso que se chama vida. Daí a minha crença que deve existir vida após a morte. Senão não valeria a pena tamanho esforço. Tanto sofrimento. Tanto trabalho e tantos lamentos.

Cheguei a um ponto da minha caminhada pensando no que tenho feito até aqui. Podem dizer que foi pouco. Que poderia ter feito mais.

Creio ainda ter muitos anos de vida. Estou apenas na metade. Ou seriam menos anos? De um viver insano.

Em verdade acordo feliz por tudo que conquistei. Mas, no entanto, a maior graça conquistada por certo seriam os amigos que deixei. Aqueles a quem consegui esparramar felicidade. A todos os pacientes aos quais ajudei a minorar as dores.

Confesso que não cheguei, ainda, aquele ponto da encruzilhada, que ora se olha prum lado, vira-se pro outro, e não se sabe pra onde seguir em frente. Pra mim tanto faz, tanto fez.

E se por acaso chegar aquele ponto, daquele senhor que foi enterrado dias atrás, desatinado com o desenrolar da vida, tomara tudo isso não aconteça a mim. Pois ainda sou forte o suficiente para seguir em frente. Até sempre. Oxalá Deus me ajude. E a todos que me acompanham. Até o dia em que me despedir do mundo. Num dia incerto. Nem tão perto. Nem tão longe.

Se cheguei até aqui outros dias virão. Felizes como agora estou. Num dia lindo como este. Abril em seu começo. Ano ainda em seu início. Parece que cheguei ao fim. Deste texto. Ao mesmo tempo sombrio. Mas verdadeiro.

 

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