Águas de março e Chico Trovoada

Como tem chovido nestes dias de março.

Chove ao cair da tarde. Repetem-se as tempestades no dormir da noite.

O pobre Chico, trabalhador rural, acabara de se mudar pra cidade.

Nascido na roça, onde tinha o umbigo enterrado debaixo de uma bananeira nos fundos do quintal, Chico não sabia fazer outra coisa senão aquelas tarefas rotineiras, as quais amava como tinha verdadeira adoração pelas suas vaquinhas tatus- com- cobra- mansa.

Acordava ao cantar do galo. Tomava um café requentado. Comia uma broa de milho feita na noite passada.

E ia cedo ao curral. Onde já o esperavam, famintas, duas dúzias de vacas mestiças.

Tirava cerca de duzentos litros de leite em duas ordenhas. Era o suficiente para ter uma vida confortável, sem exageros.

Chico, apelidado de Trovoada, devido ao medo que tinha dos relâmpagos, sempre viveu para o trabalho. Honesto com a palavra empenhada. Pagava as contas sempre antes do vencimento. Não devia a ninguém. Nem mesmo à vendinha da localidade, que sempre vendia fiado aos vizinhos. E na maioria das vezes não recebia. Daí a bancarrota que um dia assistiu as suas portas serem fechadas.

Chico era ainda moço quando aconteceu o infortúnio. Depois de uma tempestade que despencou ao final de fevereiro viu todo o seu patrimônio ir pela enxurrada.

O velho curral foi lambido pela enchente. Que levou tudo de roldão morro abaixo. As vacas desapareceram depois da tempestade. A única que restou viva foi encontrada num brejo distante. Ainda viva. Mas acabou morrendo horas depois.

Chico, desconsolado, teve de se mudar pra cidade. Deixou tudo aquilo que sempre amou entregue a mãos desconhecidas. Como não tinha parentes perto um vizinho, com fama de mau pagador, acabou ficando com a fazendinha, sob a promessa solene de um dia quitar o débito. Mas nunca honrou o compromisso. E Chico ficou no prejuízo.

Uma vez na cidade, sem nenhuma aptidão para qualquer serviço que não fosse rurícola, Chico se viu num apertume danado. Levou num embornal surrado algumas economias. Que logo desapareceram num piscar de olhos.

Com grandes dificuldades arranjou um emprego de gari.

Chico, esforçado, passava o dia inteiro correndo atrás do caminhão de lixo. Terminava o dia exausto. Cheirando a carniça podre. Com o corpo esbodegado.

Graças ao trabalho duro Chico consegui comprar um lote na periferia. Era num terreno condenado pela prefeitura devido ao risco de deslizamento.

Um ano se passou. Desde então.

Chico pensou que a sua sorte havia mudado. Terminara de construir um barraco numa encosta desprovida de vegetação. Lá embaixo passava um corregozinho. Que de vez em quando transbordava causando transtorno a população ribeirinha.

Março entrava em sua segunda metade. Chovia durante a noite. Repetiam-se as tempestades ao cair da tarde.

Chico continuava a sua lida na função de gari. Eram oito horas de trabalho exaustivo. Percebia pouco mais de um salário mínimo.

Comprou uma televisão, a prestação, uma geladeira seminova, e um fogão de segunda mão.

O seu barraco ficou um brinco. Tudo bem arrumadinho. Eram dois quartinhos, uma cozinha aos fundos, uma salinha toda mobiliada e um banheiro reluzindo a limpeza.

Chico era feliz e bem o sabia. Graças ao esforço hercúleo conseguiu realizar seu sonho de ter uma casa própria. Aquele barraco, edificado em área de risco, via a cidade sem olhares de cobiça.

Até que num final de semana, depois de uma tempestade, tudo veio abaixo. O morro despencou. Soterrando a casinha do Chico em meio aos detritos que escoaram morro abaixo.

Chico Trovoada foi encontrado ainda vivo. Todo coberto de lama. Irreconhecível dentro de sua nudez maculada de barro vermelho.

Ainda hoje, morando num alojamento para desabrigados, Chico deseja começar tudo de novo.

Não sei se ele vai conseguir. Tomara. Se o poder público abrir as comportas da generosidade em prol dos verdadeiros heróis da comunidade. Não precisa dizer que não são os políticos gananciosos.

 

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