Saudade dos velhos carnavais

Bons tempos aqueles, quando aquela máscara negra dizia que iria beijar-te agora, eram mais de mil palhaços no salão. E o velho Pierrô tentava roubar um beijo da Colombina, sem segundas intenções.

Era quando Lourival, ainda menino, não perdia um baile de carnaval.

Lá ia ele, fantasiado de pirata, sem a indefectível perna de pau, tentando entrar pelo portão do velho clube, situado na praça principal. Na maioria das vezes lhe era barrada a entrada. Pois o pai, sem dinheiro, não podia comprar o ingresso. Ali na porta, olhinhos perdidos na saudade, o pequeno Lourival passava horas e horas a espera que alguém, uma senhorinha amável e caridosa, a ele permitisse ficar pelo menos algumas horas a desfrutar daquelas músicas que ainda se escutam  em seus ouvidos sedentos de nostalgia.

Passaram-se os anos. Lourival de criança se transformou em adulto. Subiu-lhe as costas a responsabilidade. Trabalhando como metalúrgico numa fábrica de autopeças permaneceu solteiro. Pois até a idade em que conta agora não se apaixonou por nenhuma Colombina, apesar de muitas delas usarem máscaras negras, embora tenha tentado afanar um beijo de algumas delas, não tenha logrado sucesso em suas vãs tentativas de se unir a alguém.

Lourival sempre se deu bem no trabalho. Era operário de bom conceito entre os patrões. Sempre se destacava por sua generosidade e alegria. Quando chegava o carnaval, então, um largo sorriso se desenhava em sua face, agora vincada pelo tempo.

Lourival era feliz e bem o sabia. Aos quase setenta anos, faltavam alguns meses apenas, já aposentado, sempre fazia questão de ir aos bailes de carnaval.

As fantasias variavam. Ora ia de Pierrô, ora de marinheiro, por vezes de verdureiro, sempre alegre e festeiro.

Aproveitava ao máximo todos os dias. Do sábado a quarta-feira de cinzas sempre passava na rua. Ou assistindo aos desfiles, ou até mesmo fazendo parte de um  bloco que desfilava na avenida.

Lourival não precisava beber para ficar alegre. Aproveitava a folia sempre sóbrio. Brincava como se fosse menino. Apesar dos seus muitos anos.

Até que um dia, quando saiu cedo de casa, eis que o alegre Lourival deu com uma turma fazendo algazarra. Tentou se ver livre deles. Correu como se fosse menino. Mas, como seus passos, já trôpegos, impediam qualquer tentativa de evasão, acabou sendo alcançado pela turba arruaceira.

Os marmanjos, sem nenhuma testemunha por perto, fizeram do pobre Lourival de gato e sapato. Pisotearam-no. Tiraram-lhe a fantasia. Despiram-no por inteiro.

Como se não bastasse tanta maldade afanaram todo o dinheiro que Lourival trazia no bolso.

Lourival se viu só. Abandonado na sarjeta, com o corpo alquebrado cheio de hematomas. Por sorte na hora passou uma viatura da polícia. Foi levado a um pronto socorro. Ali permanecendo por dois dias por falta de vaga no hospital.

Era terça-feira de carnaval. E como o alegre Lourival amava a folia. Quando foi agredido estava fantasiado de pirata. Do encontro restou apenas um olho roxo e uma perna fraturada.

Chegou a quarta-feira de cinzas. Lourival, impossibitado de sair de casa, só lhe restou assistir ao derradeiro dia da folia pela televisão.

Foi quando, recostado ao leito, o pobre Lourival sentiu uma pontada no peito. Era indício de um infarto. Sem ninguém a ajudá-lo Lourival não teve como ir a um hospital. Ficou um dia inteiro entregue a sua desdita. Por sorte, quando se viu quase morto, passou pela sua casa um amigo inesperadamente.

Mais uma vez Lourival ficou uma semana inteira entre a vida é a morte. Mas ressurgiu das cinzas qual Fênix. A espera de outro carnaval.

Aos setenta anos, ainda com a saúde abalada, o já idoso folião vestiu a fantasia de Pierrô. Alegre, feliz da vida, Lourival partiu rumo à avenida.

Mais uma vez a sorte conspirou contra os seus anseios. Uma vez assistindo a folia, assentado na arquibancada, em meio a arruaça dos arruaceiros, a tábua em que estava assentado acabou desabando.

Desta vez o trauma foi bem pior. O já ancião Lourival teve as duas pernas fraturadas. E passou o resto da vida sem poder assistir ao carnaval que tanto amava.

Mesmo assim, o sempre alegre Lourival, recostado ao seu leito, de morte, antes de fechar os olhos, para sempre, assistindo ao desfile das escolas de samba, do Rio de Janeiro, sonhou um sonho passageiro.

Neste sonho, não sei se ainda em vida, ou depois dela, o velho moribundo sonhou com uma linda mulher, fantasiada de Colombina. Tentou afanar-lhe um beijo. Mas ela desviou os lábios em direção a outro. Foi então, neste exato minuto, que a alegria de Lourival se transformou em tristeza.

Quando, em seu velório, ao ver-lhe o semblante sempre alegre, senti no âmago uma pitadinha de tristeza.

Até hoje, quando me lembro do velho Lourival, sempre presente nos bailes da carnaval, sinto por dentro aquela saudade imensa da velha máscara negra. Pena  que os Pierrôs e Colombinas não voltam mais.

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