Enquanto eu puder…

Hoje, como de rotina, passei a noite pensando na vida.

Ainda me lembro dos últimos dias do meu pai.

Ele, assim que foi jogado ao leito, dali não mais se levantou.

Foi um ano inteiro de sofrimento. Não apenas para ele bem como da família inteira. Minha mãe, mais próxima dele, tudo fazia para atenuar-lhe a agonia. Uma vez na cama seu corpo esquálido cobriu-se de escaras. Não mais se alimentava pelas vias normais. Uma sonda fina foi introduzida desde a sua boca até o estômago. Nem mesmo os excrementos controlava mais.

E eu, médico, sempre atarefado com a profissão, mal tinha tempo para passar por aquela casa. Que daqui se avista pelos fundos. Com paredes tintas de saudades. E janelas agora fechadas dada à ausência da Rosinha, que passa uns dias em Belo Horizonte, em companhia do meu irmão.

Doem-me dentro do peito às vezes quanto ali comparecia. Meu saudoso pai, olhares perdidos no vazio do nada, olhava o teto mal entendendo o que se passava ao derredor.

Na hora do banho era outro sofrimento. Naqueles tempos ainda não haviam cuidadores experientes no acompanhamento da fatídica doença de Alzheimer. E era apenas minha mãe, algumas solitárias vezes eu, que ajudavam meu pai, já refém desta cruel enfermidade, a sair do banho, e encaminhá-lo a cama. Quantas expressões de dor e desalento vi desenhadas no semblante antes altivo do meu querido progenitor.

Até o dia em que alguém o levou para junto do Deus Pai. Confesso, sem medo de faltar com a verdade, que aquele dia para todos nós foi um alívio. Vê-lo partir, depois de cruel enfermidade, nenhum ser vivente merece tanto sofrimento, foi para minha família uma despedida assaz esperada. Creio até dizer que foi avidamente degustada. Depois de conviver ao seu lado tantos anos aprendendo sempre boas lições.

De hoje a três dias comemoro mais um ano de vida. Hoje estou sessenta e oito. Dia sete deste estarei mais longe na minha caminhada contínua por este lindo planeta. Espero não ser interrompida tão precocemente. Como aconteceu ao meu pai.

Enquanto eu puder existir, pleno de tirocínio, de discernimento, caminhando sempre, escrevendo o que minha imaginação dita, gostaria de continuar por aqui, vivendo feliz ao lado da outra família a qual elegi com sucessora da primeira que me fez vir ao mundo.

Enquanto eu puder decidir, por mim mesmo, o que vai ser melhor para mim, não sob a tutela de terceiros, gostaria de continuar a vida com a mesma intensidade de agora.

Enquanto conseguir admirar o sorriso do sol, o tamborilar dos pingos da chuva na minha janela, puder divagar sobre o quão sou feliz ao lado dos meus, agora dois netos são parte do legado que deixarei atrás de mim, espero continuar vivo, caso alguém ouvir as minhas preces.

Enquanto puder decidir, em plena consciência, o que farei hoje, amanhã, não me sujeitar a outrem, como meu pai nos derradeiros anos, tomara os meus desejos continuem assim como estão. Livres leves e soltos. Com a pipa que o garoto elevou aos ares, durante a ventania de ontem a tarde.

Enquanto eu puder caminhar, correr de vez em quando, pensar sempre, que eu seja agraciado por estas vontades, já que ainda sou dono dos meus pensamentos.

Enquanto eu puder conversar, quando me apraz, ficar em silêncio quando o momento pede, que seja feita a minha vontade, conquanto esta durar.

Enquanto eu puder decidir por qual caminho seguir, que continue a andar, na hora quando melhor me aprouver, sem a ajuda piedosa de nenhum ser vivente. Espero que minhas pernas sejam fortes o bastante para me levarem para onde quiser ir. E a cama seja apenas o lugar de descanso. De passar uma noite em paz. Sonhando com os anjos. Ou quem quer que seja.

E enquanto for capaz de construir castelos de sonhos que eu consiga viver dentro deles. Bem sei que a gente vive a vida inteira edificando castelos de sonhos. E mal temos tempo de desfrutar o seu aconchego.

Enquanto for capaz de viver em intensidade plena, que não me impeçam de continuar a viver. Mas, quando me for alijada a consciência, a clarividência, e ser condenado a passar os últimos dias numa cama macia, cultivando escaras, dando trabalho a terceiros, que não impeçam de decidir o que vai ser melhor para mim. Deixem-me voar. Permitam-me levitar. Rumo ao infinito. Se esse lugar for o céu azul, tanto melhor. Mas caso seja em direção aquelas nuvens escuras, não tenho nada a me opor.

Só espero, enquanto eu estiver por aqui, não me impeçam jamais de decidir, qual o melhor caminho, qual o destino, pra onde vou, se vou, se fico.

Enquanto puder sorrir, que não me faltem amigos para se despedirem do que fui, a eles o melhor de mim.

Não sei se é pedir muito. Neste meu aniversário: que não me faltem motivos para sorrir.

 

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