Quase nem me lembro mais

Hoje dormi na casa do meu querido Theo.

Foi a segunda vez que o fato aconteceu.

Seus pais viajaram. O motivo foi comprar mais um enxoval de outro neto que vai nascer. Com este, somando o Gael, serão três carinhas novas, quase um time de futebol de salão. Falta o goleiro e mais dois. Quem sabe serei admitido neste time? Para quem não sabe, quando jovem, jogava futebol de salão ao lado do meu pai. No mesmo clube pra onde vou ao cair das tardes, invariavelmente todos os dias, para tentar manter a saúde que ainda se esparrama dentro de mim.

Que saudade daqueles anos bons! Ainda menino, ia a escola, a mesma cujo uniforme verde e branco é usado pelo meu primeiro neto.

Ontem fui buscá-lo naquele colégio mais que centenário. Fomos em três. A minha querida esposa, outra amável companheira, a mesma que cuida do Theo em suas travessuras brejeiras.

O hoje se faz presente. O ontem quase está esquecido. O amanhã, inda indefinido, tomara me traga boas lembranças do que passou.

Bem me recordo da data do meu nascimento. Foi num dia sete de dezembro. Meu pai trabalhava no mesmo banco do qual sou fiel depositário. Na linda Boa Esperança, terra imortalizada pelo grande poeta Lamartine Babo, na sua linda canção Serra da Boa Esperanca.

Onde nasceram ilustres cidadãos, para não me esquecer de algum deles cito apenas Rubem Alves e Nelson Freire.

Quem sabe farei parte desta dupla famosa, fazendo o futuro se lembrar de quem sou eu?

Ainda me lembro dos idos anos de um mil novecentos de cinquenta e cinco. Quando para aqui vim. Confesso que não foi por vontade própria. Ainda era bem novinho para decidir para onde ir.

Foi para aquela rua, tantas vezes citada nas minhas crônicas, que daqui se avista pelos fundos, que criei raízes e me transformei.

De menino artioso, em jovem feito, depois adulto desfeito, para o que sou hoje. Um ancião com alma de menino. Ainda pensando que viver sempre sorrindo, como meus queridos netos, é bem melhor que ser velho carrancudo.

Nem me lembro mais da minha infância perdida. Passaram-se tantos anos. São quase setenta.

A memória ainda está afiada. Embora um tanto surrada pelo passar dos anos.

Mas, tentando voltar atrás, ainda na distante Boa Esperança, quase não me recordo mais onde morei.  Um dia me disseram, e eu a visitei, a Rua Coqueiral 155, onde vim conhecer este mundo tão lindo, onde de vez em quando chove, noutros dias faz sol.

Aquela rua me foge da lembrança. Talvez ela esteja mudada. Como eu me transformei.

Meus amigos de antão muitos deles não estão mais aqui. Muitos já partiram rumo ao infinito. Para onde partirei, mais cedo ou mais tarde. Muitos colegas já são avôs. Muitos já mudaram de esposa, de casa, no entanto eu continuo fiel a família a qual elegi. Felizmente. Pra mim.

Nem me lembro mais do dia quando nasci. Se foi de parto normal. Ou através de uma cesariana. Minha mãe saberia informar com exatidão. Pena ela não estar mais aqui. Pertinho de mim.

Meu pai, saudades cavoucam-me as entranhas, partiu há exatos dezoito anos. Com que saudades me lembro dele. Agora só me restam as lembranças do tanto que ele me ensinou. Principalmente a escrever.

Pouco me lembro da minha infância. Ela foi passada, em quase sua totalidade, naquela rua perto de um velho hospital. Foi nele que ensaiei meus primeiros passos como profissional da saúde. Com que emoção ali empunhei o bisturi, vindo de terras de Espanha, país onde completei minha formação profissional. Logo logo me fiz especialista em operações das vias urinárias, operando dias e noites, quase não tinha tempo para pensar em mim.

Quase não me lembro mais, ou falto com a verdade, de quando conquistei minha primeira namorada. Foi no rela do jardim. Na mesma praça que daqui se avista, pelo alto, agora ensombrada por edifícios altos, uma selva de concreto que empana a vista da linda serra da Bocaina, hoje esfumaçada por um nevoeiro denso.

Falto com a verdade se disser que nem me lembro mais dos amigos de infância. Dos colegas de faculdade, eles ainda trabalham em múltiplas especialidades. No último encontro de formatura já haviam falecido vários. Quem será o próximo? Nem quero saber.

Lembro-me com inexata exatidão, de quando recebi o canudo do curso de medicina. Naqueles tempos idos usava uma beca escura. Ainda tinha cabelos. Bem alinhados num garboso topete. Por cima dos lábios finos um bigode negro como a asa da graúna.

E como o tempo passa. Como a idade nos transforma. Pena que não temos tempo de parar as horas. E nos deliciarmos apenas com as velhas lembranças.

Agora são quase sete e meia. Logo mais o dia vai se transformar em noite. Logo mais não estarei mais por aqui. Talvez alguém se lembre de mim. Como eu me lembro de tantas pessoas e fatos do meu passado.

Comecei meu texto falando que nem me lembro mais. Confesso que menti.

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