Velhas lembranças

A partir de quando se fica velho?

Qual seria a idade limítrofe entre o adulto e o ancião? E entre o menino arteiro, o garoto traquina, e o jovem prestes a entrar na universidade?

Na minha modesta opinião torna-se quase impossível estabelecer medidas exatas.

Pois as idades se confundem. A criança ainda mora em mim. Embora tenha idade para ser avô.

É assim que me sinto quando estou ao lado do meu primeiro neto. Desvisto-me da minha roupagem de idoso. Retrocedo no tempo. Volto nos anos.

É como se ainda brincasse naquela rua que daqui se avista pelos fundos.

A casa dos meus pais continua do mesmo jeito. Foi reformada diversas vezes. Pena que se reformam as casas e as pessoas que viveram dentro delas continuam envelhecendo. Não é possível passar uma pitadinha de tinta em nossas rugas. Nem ao menos reviver os nossos cabelos castanhos.

Assim caminham os anos. O que seria da gente sem as velhas lembranças. Quanto a elas nunca as olvidarei.

Continuarei fiel ao tempo quando fui criança. Naquele velho colégio estudei.

Ainda me lembro da primeira merendeira. Aquela que um dia sumiu na hora do recreio. E uma coleguinha de pernas grossas, um tanto quanto encabulada, veio me entregar a velha merendeira, não sem antes lançar a mim olhares de puro encanto. Pena que por ela não me encantei.

Fazem parte das velhas lembranças o velho clube para o qual ainda vou aos finais de tarde. Da sua piscina profunda, que agora se tornou mais rasa, da profundidade exata para que o passado não me afogasse.

Faz parte das minhas lembranças, um tanto gastas, o campinho de futebol de cimento duro. Era ali que jogava futebol de salão com meu pai. Ambos pernas de pau. Logo mudamos de esporte. Passamos a jogar tênis. Atividade que não fomos tão mal. Um filho meu conseguiu superar a ambos. Joga com muito mais maestria. Tanto eu quando meu saudoso pai não jogamos mais.

Faz parte das minhas lembranças aquele cãozinho pretinho. Seu nome era Rebel. Ainda me lembro, saudades avoam, o dia do seu passamento. Ele, numa briga de rua, com outro cão bem maior, veio a se despedir da gente depois de lenta agonia. Não me lembro se ele foi enterrado. Da mesma forma que meu passado jamais o foi.

Faz parte ainda de velhas recordações a outra casa que daqui se avista. Ela foi construída por mim. A duras penas. Era e ainda é no bairro Centenário. Pertinho da Costa Pereira. Quase sua continuação.

Foi a única edificação que construí. As outras não fazem parte das minhas lembranças. Foram outros que as construíram. Agora moro numa delas. Num simpático condomínio de onde vim.

Voltando ainda mais no tempo, volto aos anos de menino.

Na Boa Esperança onde nasci. Meu pai trabalhava no mesmo banco do qual sou fiel depositário. E como este banco mudou. Ficou mais impessoal. Agora as máquinas são capazes de desempenhar o mesmo papel do meu pai.

Um dia as lembranças se tornaram mais próximas. De repente cresci. Voltei a minha cidade amada, feito médico. Foi um começo de carreira de muito trabalho. Passava noites acordado. Preocupado com a saúde dos pós- operados.

Aqui fiquei mais de vinte anos solitário na especialidade. Quantas pedras no rim retirei. Quantas próstatas hipertrofiadas foram removidas. Quantos pacientes satisfeitos? Não sei.

De repente passaram os anos. Ainda não me sinto preparado para a aposentadoria. Talvez um dia. Quem sabe?

Já hoje, nesta manhã tão linda, choveu bastante durante a noite, no céu nuvens cinzentas misturam-se a outras mais brancas, ao olhar de soslaio para a parte mais baixa da cidade, enxergando aquela rua de tantas lembranças ainda perenes, ao ver a casa dos meus pais, vieram à tona velhas lembranças.

O velho clube, a casa do tio Chico, do tio Rui, a outra do lado de cima da do tio                Chico, onde passei os melhores anos da minha vida, ainda estão por ali.

A Rua Costa Pereira está transformada. Não radicalmente. Na sua totalidade. Lá ainda mora parte do meu passado. Do qual não me esqueço, jamais.

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