Pobre Chico Aftosa

Acordar cedo, tomar um café requentado, ingerir um pão amanhecido com gosto de coisa estragada, passar uma água fria no rosto, e logo ir ao curral ordenhar meia dúzia de vacas.

Esta era a rotina do pobre Chico.

O homem da roça completaria, naquela primavera seca, mais de sessenta anos de vida. Toda ela passada no campo, trabalhando como um jumento, naquelas tarefas pesadas.

As mãos de Chico eram pura lixa. Mais cascudas que o casco de tartaruga, com mais de duzentos anos nos costados.

Família Chico não tinha. Era apenas ele nada mais que sua pessoa amistosa a cuidar daquela gleba de chão.

Embora contasse com apenas sessenta anos se parecia muito mais.

Rugas, cabelos tintos de neve, feições exauridas pelo tempo, Chico vivia solitário, desde quando a mulher, a única que teve durante toda uma vida, o deixou para viver na cidade.

Desde então nunca mais Chico teve uma fêmea com quem dividir as noites insones.

Acostumou-se à solidão. Como a gente se acostuma a ela, quando não se tem outra opção.

Todos os anos o velho Chico vacinava suas vacas contra a tal febre que pode dizimar o rebanho. Pontualmente, duas vezes ao ano, ia à cidade, comprava as tais vacinas, e aplicava no couro duro das poucas vacas que possuía.

Naquele ano, entretanto, por culpa do atraso do correio, que por ali passava de vez em quando, não lhe foi deixada a tal carta avisando que deveria vacinar o gado.

Foi a única vez que faltou com o compromisso inadiável.

Informado por um vizinho de pasto da falta de vacinação em tempo hábil, foi correndo a cidade. De carona no velho caminhão leiteiro, naquela manhã bem cedo havia chovido a escorrer água, assim que chegou à cooperativa ela ainda estava de portas fechadas.

Chico não podia esperar. As vacas famintas já berravam perto do curral. E não havia outra pessoa que o poderia substituir.

Chico voltou a roça sem poder comprar as vacinas. E naquele ano faltou ao compromisso sempre agendado para os meses de maio e novembro.

Passou o verão. De repente mostrou a cara fria o inverno. Final das chuvas. Tempos difíceis para quem mora na roça. O preço do leite despencou como as águas da cachoeira que escorrem pela ribanceira.

Numa manhã, bem cedo, quando Chico se preparava para ir ao curral, eis que uma pontada no peito o fez sentir-se subitamente mal.

Foi levado às pressas para a cidade. Foi internado com uma dor lancinante no peito. Era prenúncio de um infarto. Passou três noites e dois dias internado numa enfermaria pelo SUS. Foi-lhe dado alta ainda pior de quando entrou.

Ao chegar a roça, que tanto amava, a primeira coisa que bateu os olhos foi uma carta advertência, oriunda de um instituto responsável pela vacinação do gado.

Ela o informava que, por falta da vacinação em tempo oportuno, deveria pagar uma multa exorbitante. Bem além de suas posses. Caso não pagasse a importância até o fim do mês vigente seria incluído na dívida ativa. Com as penalidades devidas. Bem conhecidas por quem entende de leis.

Chico, com aquela doença que lhe tirava o sono, teve de voltar à cidade. Por sorte um amigo passou naquela hora de aflição.

Chico, apelidado de Chico Aftosa, por causa daquele incidente tão banal, ao chegar a porta daquela instituição que cuida da saúde animal encontrou-a fechada. A dor no peito importunava mais ainda. Era uma aflição só.

De novo foi internado. Depois de longa espera.

Chico deixou o hospital e de novo voltou a porta que antes encontrou fechada. Um funcionário mal educado tratou-o como não se deve tratar uma vaca.

A multa venceria de ali há poucos dias. Não precisa dizer que o homem do campo não tinha recursos para honrar mais este compromisso.

De volta ao seu pedaço de chão, desconsolado, Chico caiu de cama. A dor havia aumentado. Faltava-lhe ar.

Sem condições de voltar ao trabalho, débil como se sentia, o velho Chico fechou os olhos. Por sorte, ou seria azar, não foi para sempre.

O mês findou-se. Com ele a multa não foi paga. E Chico caiu na dívida ativa. Teve a conta do banco bloqueada. Seu CPF foi cancelado. Perdeu todos os direitos de cidadão.

Numa tarde ensolarada Chico Aftosa, quando foi cuidar do gado, reparou que todas as vacas sorriam para ele. Mesmo só com os dentes de baixo.

Não havia nada que fazer. A não ser esperar a morte. E ela chegou de repente. Antes do término da primavera.

Quando foi sepultado, ali mesmo, debaixo de uma mangueira, apenas alguns animais velaram o amigo, um deles, acredito que foi a égua charreteira, fez uma breve locução: “aqui jaz um amigo. Gente honesta. Trabalhadeira. Que passou a vida inteira honrando seus compromissos. E por causa de uma carta malcriada, de uma dívida que não teve como pagar, Chico despediu-se da vida quando poderia ter ido além. Agora pranteamos nós. Pena que o velho Chico não mais está entre nós. Que Deus o guarde num bom lugar”.

Até hoje, quando passo na roça do Chico, logo me vem à lembrança casos como o dele. A boa gente da roça merece maior consideração. Não comiseração, entendam. Esta é a minha humilde opinião.

 

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