Um país enfermo

Parte da minha vida tenho passado entre as doenças.  O que me resta de vida tomara as mesmas enfermidades não tomem conta da minha capacidade.

Completo, neste dezembro que nos acena sessenta e nove anos de vida e quarenta e quatro de formado.

Bons anos aqueles quando aqui cheguei.

Imbuído das melhores intenções de tratar doenças, de retirar daqueles corpos cansados as diversas patologias que afligiam aqueles doentes.

Quantas noites de sono passei naquele hospital. Quantas intervenções cirúrgicas estão anotadas em minhas lembranças. Quantos pacientes salvei. E quantos deles não dei conta de atenuar-lhes as dores, minorar-lhes os dissabores.

Quantas consultas atendi. Quantos muito obrigados ouvi. E quantos deles não entenderam a minha pressa. Já que ainda tenho de pular de um emprego a outro. Não para enricar. E sim para pagar as contas que entulham o tampo de minha mesa.

Ainda longe da aposentadoria exerço a medicina com amor e desvelo. Agora, que não mais tenho de operar tanto, a experiência me ensinou a ser mais observador. Ainda me lembro de um paciente, que de pouco entrou em minha sala, com os olhos rasos d’água, em choro compulsivo, angustiado por não conseguir ereção suficiente para satisfazer a sua parceira, que acabava frustrando a ele mesmo, depois de meia hora ouvindo-lhe as queixas, era uma patologia puramente emocional, dele ouvi aquele agradecimento: “obrigado doutor por me escutar.”

Declarações como esta são o combustível que me mantém ativo. O alento que me alegra tanto. Depois de anos e anos na doce militância entre as doenças. Muitas vezes saindo vencedor. Noutras sendo derrotado fragorosamente.

Naqueles anos quando comecei a lida de médico as coisas eram bem distintas. O país ainda caminhava a passos mais ou menos seguros. A crise ainda não assumia a postura ingrata dos dias de hoje.

Quase não se ouvia falar em corrupção. A violência era restrita a certos ambientes. Não se viam tantas balas perdidas encontrarem endereços errados. Os políticos eram respeitados como cidadãos de bem.

Não se viam tantas filas de espera para conseguir uma operação. Não se observavam tantos pacientes sofrerem com a demora. Muito menos tanta gente pobre mendigando migalhas. E quantos milionários infiéis depositários de contas no estrangeiro.

Agora, nestes anos pródigos em bandidos soltos, outros, pais de família desempregados, sendo injustiçados cumprindo penas quando deveriam estar trabalhando. Mas por falta de trabalho têm de afanar algo para dar de comer aos filhos. Sem escola, jovens mercês das drogas, sem perspectivas de um futuro condizente as suas felicidades.

Hoje, infelizmente, o que vejo é um país à deriva. Eleições se avizinham. Mas não tenho a certeza que o candidato eleito vai conseguir por ordem na casa.

Agora somos náufragos boiando num mar agitado. Os combustíveis sobem a cada semana. A mídia sedenta de sangue alardeia apenas coisas insalubres. Sinto no ar cheiro nauseabundo de titica de cachorro.

Incêndios de grandes proporções tintam de vermelho a nossa memória. O patrimônio público desaba aos nossos olhos.

Agora, nos dias de hoje, sinto no ar uma intranquilidade manifesta. O país anda doente. Pena que não tem vaga em nenhum hospital que possa minorar as nossas dores.

Sinto no peito uma sensação de desconforto enorme. É como se algo indefinível me sufocasse. Falta-me ar. Falta-me lugar.

Ontem um amigo despediu-se de mim. Ele partiu. Mudou-se com a família a outro país. Talvez lá ele encontre a felicidade que não descobriu aqui. Neste país enfermo. Tomara ainda não em estado terminal.

Só depende de nós para encaminhá-lo aos trilhos. De quem mais?

É triste viver em um país desgovernado como o nosso. Com um futuro incerto. Um país doente. Vítima de uma doença crônica. Chamada de corrupção e angústia de ver tanta coisa errada e nada poder fazer.

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