Não nos joguem aos ombros culpa maior que não temos

Denúncias, reclamações, queixumes, viraram moda nestes tempos de crise por que passamos.

Queixa-se da hora do ônibus passar. Do mau tempo que grassa no ar. Da enorme fila formada para tentar a tão sonhada aposentadoria, na maior parte das vezes adiada. Do preço do pão que recém saiu do forno. Da corrupção desenfreada que assola o país.

O povo brasileiro tem motivos de sobra para se queixar. Mas, como médico, enfrentando há tantos anos a penúria por que passa a saúde pública, quantas vezes os queixumes são levianos. Indevidos, endereçados a pessoa errada, pois nem todos os médicos são mal formados, embora a mídia tente fazer entender justamente o contrário.

Joãozinho sempre acalentou um sonho. Ser médico, usar aquele uniforme de um brancume imaculado, salvar vidas, atenuar dores, e, se possível fosse ganhar o suficiente para tirar da miséria a família onde nasceu. Numa rocinha pequena. Onde quando a vaca deitava o rabo ficava de fora da cerca de arame farpado.

Quando menino estudou numa escolinha rural. Depois levaram aquela pobre e singela casinha para a cidade perto. Ainda se lembra, com saudades, de quando uma Kombi caindo aos pedaços vinha buscá-lo, e aos coleguinhas, na velha porteira que o tempo levou.

Era bom aluno. Aplicado, esforçado, só tirava boas notas. Em poucos anos deixou aquela escolinha, pronto a enfrentar outros percalços da vida, já que ali não tinha futuro, pois sua intenção era entrar numa faculdade de bom conceito.

Foi preciso muito esforço e dedicação. Passou noites insones. Debruçado nos livros. Trabalhava durante a noite. Para se manter na cidade grande. Era garçom nas horas madrugadas. Vivia entre as mesas de mãos estendidas, esperando gorjetas, esmerando-se nos atendimentos.

Joãozinho não foi aprovado na primeira tentativa de entrar na faculdade. Desejava aquela que era de melhor conceito, se possível uma universidade não paga.

No segundo ano logrou êxito. Ficou entre os dez primeiros.

Foram seis longos anos de estudos constantes. Já no quarto ano começou a frequentar hospitais. E como amava aquela dedicação contínua. Aqueles plantões sucessivos. Nem aquelas noites mal dormidas lhe tiravam o ânimo de se tornar doutor um dia.

Afinal é chegado o grande dia. Doutor João recebeu o tão sonhado diploma numa noite de muita emoção. A família em peso compareceu à solenidade. O pobre pai viu rolarem lágrimas naquela face tostada pelo sol. A mãe infelizmente não estava mais entre nós. João era filho único. Nascido naquele lar iluminado pelas bênçãos de Deus Pai.

Doutor João sabia que um simples diploma não o habilitava a exercer aquela profissão tão espinhosa. Seriam preciso mais anos e anos de estudos para se tornar médico especialista. Já que a medicina geral era um emaranhado de indefinições, e para se tornar médico completo apenas a faculdade não era suficiente. A residência médica era a continuação dos estudos. Mas, outro vestibular, mais concorrido ainda, esperava os recém-formados.

Joãozinho sonhava com uma especialidade cirúrgica. Quando menino vivia a destrinchar as galinhas. Estudando-lhes as vísceras antes de levá-las a panela.

Numa noite escura, quando se preparava para assumir um plantão, numa maternidade de periferia, uma parturiente lhe caiu nas mãos. Foi maravilhosa a sensação de fazer o primeiro parto. Ver aquela criancinha ver o mundo pela primeira vez. Lambuzada de um líquido protetor. Chorando por ver o desconhecido que a esperava, do lado de fora do útero da mãe.

Doutor João, naquele momento mágico, optou pela ginecologia e obstetrícia.

Uma especialidade que requer noites insones e muita dedicação.

Em três anos conseguiu ser titulado especialista. Era afinal o coroamento de tantos anos de estudos.

Ele ainda se lembra do segundo parto que fez. Foi um nascimento demorado. O bebê nasceu com o cordão enrolado ao pescoço. Quase morreu, não fosse o pronto diagnóstico do doutor novato.

Mais anos se passaram. Doutor João montou o tão sonhado consultório. Era um espaço pequeno. Numa sala alugada, onde compareciam alguns gatos pingados.

Foram penosos os primeiros anos. A renda não era lá estas coisas. Ganhava o suficiente para pagar o aluguel de um apartamento. Pagar as prestações de um carro. O consultório ficava vazio. O jovem doutor fazia às vezes de secretária e médico especialista.  Durante as noites fazia plantão num hospital público, onde só compareciam casos complicados.

Mesmo assim o jovem doutor não desanimava. Afinal era isso com que sempre sonhou. Durante toda infância, até virar doutor.

Numa noite escura, uma chuvarada caía durante a madrugada, apareceu em trabalho de parto uma primípara. Era uma jovem negra, franzina, mãe solteira, bastante debilitada. Ela foi trazida por uma viatura da polícia. Anemiada, mal se ouviam os batimentos cardíacos.

Foi chamado o anestesista de plantão. Neste ínterim o pobre doutor, bastante preocupado com a criança que iria nascer, como o profissional que iria fazer a anestesia ficou preso no trânsito, não restou alternativa senão o pobre fazer as vezes de parteiro e anestesiologista.

Não deu outra. Morreram mãe e filho.

Aquela não foi a primeira vez que o doutor João chorou. Copiosamente despejou toda a sua angústia na mesa do parto.

Lá fora uma turma enfurecida esperava o desenlace do parto mal sucedido. Além da imprensa sensacionalista a família da parturiente esperava ávida por culpar alguém.

Doutor João, assim que deixou a sala de parto, ainda em prantos, foi agredido por um sujeito mais parecido a um armário de portas abertas. Ainda por cima foi levado num camburão, ao lado de bandidos da pior espécie.

Doutor João passou uma noite inteira numa cela escura. Sem direito a fiança, por um crime que não cometeu.

Um mês depois soube notícias do colega em início de carreira. Ele foi processado por omissão de socorro, negligência médica, e outros artigos mais.

O jovem doutor, bastante dedicado, pensando em levar adiante o lindo sonho conquistado, a duras penas, foi impedido de continuar sua carreira.

Daí fica o meu repúdio a outros casos. Iguais a este. Avidamente alardeados por uma imprensa que adora ver sangue. E lançar à lama o nome de médicos que tiveram a única infelicidade de trabalhar em lugares despreparados para dar atendimento a pacientes pobres. A imensa maioria da população de nosso país. Desassistida pela sorte.

Quando digo: “não nos joguem aos ombros culpa maior que não temos”, acreditem.

 

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