Na fila de espera

Já tive pressa. Hoje ela não faz parte dos meus quase setenta anos.

Creio ter conquistado quase todos os meus propósitos. Filhos encaminhados, netos chegando, logo serão três, por eles, e através deles me renovo.

Hoje corro apenas para me exercitar. Corro na esteira, corro nas ruas. Talvez corra de mim mesmo. E por vezes não me encontro. Dentro das muitas facetas que fazem parte de um eu que nunca desejo descobrir.

Esperar, na plenitude de minha juventude, nunca foi qualidade intrinsecamente unida ao que era. Agora, mais tranquilo, depois de ter atingido parte dos meus objetivos, não me avexo quando numa fila de espera, pacienciosamente sossegado, vendo o tempo passar descompassado, na esteira rolante dos anos muitos que atingi.

Aprendi que a vida, para ser vivida com alegria, a paciência deve ser parte uníssona dela. De que adianta perder o resto dos cabelos que ainda ilustram minha calva luzidia? De que adianta nos estressarmos tanto se o encanto logo passa, com o farfalhar do tempo?

Agora me observo mais tranquilo. Contento-me com o pouco conseguido. Sei que tudo que ganhei vida afora é mais do que suficiente para ver meus netos crescerem. Transformarem-se em adultos. Mais certo ainda que não os verei velhos. Como eu ainda não me sinto.

O acontecido com aquela velhinha linda, no esplendor dos seus quase cem anos, me fez pensar no quanto a pressa não vale a pena. Ou talvez valha, em certos casos tão somente.

Dona Mariazinha sempre teve saúde. Mas acontece que a mesma abandonou de tempos pra agora.

De começo uma tossezinha ranheta a ela incomodava. Foi a primeira vez que esperou horas e horas num postinho de saúde perto de onde morava.

Naquele dia o médico não apareceu. Dona Mariazinha não se apoquentou. Voltou no dia seguinte. E nada da presença do doutor.

Mas ela persistiu. A tosse continuou ainda pior. Vieram os escarros hemoptoicos. Uma febre marota a impedia de dormir.

Um mês inteiro ficou pra trás. E nada da consulta agendada há tanto tempo ser concretizada.

Até que um dia, felizmente, o doutor apareceu. Dona Mariazinha, com a calma que Deus lhe deu, sorriu.

Foi atendida em menos de dois minutos. O doutor escutou-lhe os pulmões, rabiscou um pedido de raio xis de pulmão, e pediu que ela voltasse com os exames em pouco tempo.

Mas, sabe como é o atendimento via SUS.

Um mês depois dona Mariazinha recebeu uma ligação. Uma vozinha quase inaudível a ela avisava que seu exame seria numa sexta-feira, no mês de agosto, as sete horas da manhã.

Ela se animou. Finalmente iria melhorar daquela tosse persistente. Estaria curada. O diagnóstico seria feito em tempo hábil. E os medicamentos a livrariam daquele incômodo que tanto a fazia sofrer.

Mas ainda não foi desta vez. O aparelho de raio xis entrou em estafa. Era velhinho o coitado. Talvez da mesma idade da paciente.

O exame foi adiado sine die. Pra outra data, não se sabia quando.

Hoje, ao entrar no prédio onde tenho consultório, uma longa fila se formava.

Dona Mariazinha era a última naquela longa fila de espera. Pela minha conta mais de cem enfermos tossiam a frente dela. Uma sucessão de tosse mais parecida a uma orquestra desafinada.

Entrei no elevador sem chance de atenuar o problema da pobre Mariazinha. Não tinha pressa. Como seu caso merecia.

Uma semana depois soube notícias da infeliz dona Mariazinha. Ela não fez o raio xis. As fichas haviam terminado. E o radiologista tinha de correr a outro emprego. Assoberbado com a pressa que o consumia.

Depois de retornar ao médico que havia pedido o tal exame, sem o laudo da radiografia, não deu outra. Ela foi internada num hospital de periferia. Em estado lastimável. Aquela tosse que a martirizava era indício de uma pneumonia. Que lhe pôs fim à vida. Num leito esquecido de uma unidade de tratamento intensivo lotado de pessoas iguais a ela. Sem nenhuma perspectiva de vida com qualidade. Desassistidos pela sorte madrasta. Neste país à deriva.

Quantos enfermos aguardam dias e dias, meses e meses, para fazer exames simples. E muitos morrem naquelas filas de espera intermináveis. Sem atendimento decente.  Esperando pacienciosamente até que morte lhes venha buscar.

As filas de espera se alongam país afora. Nela pessoas carentes esperam pacientemente o seu dia. Que não chega nunca. Como no caso da pobre dona Mariazinha.

 

 

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