Não sei se vou estar preparado

Quantas vezes a vida nos coloca em encruzilhadas tantas, que nem sei contá-las quantas, neste meu viver intenso e desordenado.

Ontem mesmo um jovem, nos seus mal vividos vinte e um anos, casado em tempos recentes, a esposa amada contava com menos de dois anos que os dele, ligou ao meu consultório com a seguinte proposta: “doutor, estou decidido a fazer vasectomia. Não quero ter filhos. Esta ideia foi exaustivamente discutida entre nós dois. O senhor pode satisfazer ao nosso desejo”?

Na hora disse textualmente: “não”. Mas depois de pensar cá comigo, já que a decisão era irreversível e irrevogável, e outro colega por certo irá interromper-lhe a fertilidade, por que não eu?

Foi quando pedi ao casal que me fizesse uma visita. Depois de uma conversa amistosa talvez conseguisse demovê-lo do seu propósito.

Estas e outras situações continuamente me são passadas ao julgamento. E ainda não estou preparado para dar o conselho exato. Ou fazer o melhor nesta ou naqueloutra situação conflitiva.

O que o futuro nos reserva? O que nos espera daqui a alguns anos? Teremos capacidade de prever o que vem pela frente? Ou seria melhor ignorar o veredicto do tempo?

Creio que o mais sensato é a opção final. Nesta fase da vida em que me encontro ainda esbanjo saúde. Sou capaz de percorrer distâncias que beiram o infinito. Minha visão ainda é clara e transparente. Minhas pernas, o que dizer delas? Se as mesmas ainda sustentam todo meu corpo rijo. Sem queixumes, sem dizer nada a não ser continue a andar sempre.

Há dias um colega de trabalho, médico como eu, da mesma idade em que me encontro, caiu enfermo. Ele não mais conseguia pisar sem sentir dores. Foi internado pela família em estado lastimável. Ainda hoje ele se encontra em casa. Esperando dias melhores.

Já outro, mais jovem do que eu, cirurgião dotado de mãos firmes e coração generoso, de repente foi acometido por pertinaz enfermidade. Um câncer se apoderou de seu corpo ainda jovem e dele fez estragos.

Agora ele se encontra acamado.  Esquálido, com respiração assistida, com sondas e tubos enfiados em suas vias respiratórias e urinárias.

Ignoro quanto tempo ainda ele terá de vida. Na situação em que ele se encontra, sem chance de melhoras, que Deus o chame ao seu lado. Lá, no céu dos anjos, meu amigo será mais feliz do que aqui na terra, onde apenas sofre.

Outros já partiram em situações símiles. Em idades menores que a minha.

Ao fazer uma visita aos dois colegas ditos antes, antes de me despedir de seus rostos amigos, e desejar a ambos melhoras, pensei nas bifurcações que a vida nos coloca.

Hoje sou capaz de fazer coisas e loisas que não me eram facultadas antes.

Tenho um tirocínio ancho. Uma imaginação criativa. Pernas fortes e cabeça ainda pensante. Uma saúde da qual não posso me queixar. Uma família maravilhosa que me dá sustento. Nas horas que mais preciso. Pessoas boas comigo convivem. Tenho tudo que desejo. Quase sempre.

Ao pensar nos dois colegas, e outros, que passam por momentos lúgubres, não sei se estarei preparado para enfrentar o óbvio.

Bem sei que a morte nos espreita com seus olhos negros em encruzilhadas inesperadas. Tomara que consiga driblá-la como jogadores driblam seus adversários.

Mas, no caso de doenças incapacitantes, como a que hoje acomete meus dois amigos, se por acaso for jogado a uma cama, e dali não tenha a capacidade de dela sair por minhas próprias pernas, não sei se estarei preparado para enfrentá-las.

Melhor que me alijem de mim. E parta rumo ao infinito. Sem deixar aqui na terra senão lembranças boas. Melhores do que as que deixarei num leito qualquer, de um hospital qualquer, ou num leito de um CTI.

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