A orelha do burro véio e o meteorologista

Dizer que não acredito nos ditos populares, no que se escreve nas linhas das mãos, nos despachos de encruzilhadas, em mula sem cabeça, ou assombração, naquela varinha que entorta, usada por quem entende de achar água no deserto de Saara, ou na sabedoria do homem da roça, que sabe como ninguém quando vai chover, quando a espiga de milha vai dar cural, que quando a cobra cascavel faz o chocalho agitar é sinal de que o incauto deve ficar na dele, e passar ao longe, que quando se deixa a porteira aberta da fazenda de fato afasta os ladrões, que quando o sapo coaxa é sinal que a perereca vai pro brejo, ao mesmo tempo, quem tem bons sentimentos atrai coisa semelhante, tudo isso, sem mais nem isso, são coisas em que acredito piamente.

Uma vez eu lembro, andando pelas ruas como sempre faço, abre-se o sol ou chore a chuva, como hoje aconteceu, numa equina movimentada apareceu, sem se anunciar de onde, uma cigana com uma criança nos braços.

O tempo rugia com sua voz de leão faminto. Mostrava-me os dentes banguelas como se me dissessem: “doutor Paulo, se apresse. Cuidado com o que pode acontecer com seu saldo bancário. Ele já anda meio anemiado. Quase no fundo do poço da amargura sem dentadura”.

Alguma coisa bem forte me fez parar ao lado da ciganinha. Tinha uma pratinha na palma da mão direita. Se bem me recordo era de um real. Ela havia sobrado do cafezinho magro que tomei no bar de cima. Não sei quanto cobrava a leitora de mãos. Mesmo assim lhe ofertei a minha.

Assim que ela passeou os dois olhos pelas linhas da minha mão algo a assustou verbalmente. Olhou novamente, e exclamou com veemência: “felizmente seu doutô. Sua sorte vai mudar, pra melhor. Além da conta do banco ficar gorda como um capado obeso, o senhor vai ter um encontro inesperado. O destino sorri em sua direção. Sob a forma de uma linda mulher, com quem vai se encontrar, passarão a se amar, eternamente”.

Assim que deixei a cigana ler outra mão, ainda bem que não repeti a dose de indigestão, dei um esbarrão tamanho numa baleia obesa que me levou a beijar o chão duro do asfalto, naquele dia molhado e sujo de um barro viscoso, meu cheque recém emitido voltou ao fundo do poço da sem-vergonhice, e ainda por cima a tal mulher de vida fácil, aquela pela qual vaticinou minha paixonite aguda, acabou me escolhendo para marido. Não precisa dizer que declinei do seu amável convite. E estou feliz da vida infeliz que levo até hoje.

Sob acreditar em vaticínios, sem desdenhar do que se aprende nos bancos da escola, soube, ontem mesmo, por boca de um paciente da roça, um pedreiro falante como maritaca em cima do pé de jabuticaba madura, um causo que ele jura ser verdade não mentirosa.

Um dia apareceu na roça onde morava, um sujeito bem apessoado, de modos gentis, refinados, falante, intitulando-se meteorologista formado em Harvard, pra quem não sabe fica em Cambridge , Massachusetts.

Ali, naquele pedaço de chão, esquecido pelos homens de índole ruim, apreciado por gente de bem, qualquer um que aparece é considerado bem- vindo. Até que se prove o revés.

Doutor Strange In de Night foi acomodado num quarto de solteiro. Ele estava só.

Era um dia de assustar pela claridade da luz do sol, pela ausência sequer de um rabinho de nuvem, de qualquer indício de chuva no alto. Nada indicava que iria desaguar água de cima.

A noite se avizinhava.

Seu Zé da Intuição, como se alardeava ser o hospedeiro pedreiro, roceiro de umbigo enterrado ali mesmo, adorava um dedo de prosa. Puxou conversa com o laureado meteorologista oriundo de Harvard. A prosa boa estendeu-se lá pelas tantas.

Antes de deixar a acomodação singela, dotada de todo conforto, aos cuidados da visita, seu Zé da Intuição  recomendou-lhe que puxasse a cama de lado. Uns dois metros bastava. Explicou, docemente, com jeito de quem entende do riscado, que, caso a cama ficasse naquele lugar, debaixo de uma penca de telhas furadas, uma goteira imensa desceria pelo telhado. E o famoso meteorologista com certeza ficaria ensopado.

Doctor Strange In de Night não lhe fez caso. Até riu do seu vaticínio, que por certo não iria dar em nada. A noite choveria apenas estrelas, nunca água sob a forma de chuva molhada.

Na manhã seguinte choveu a fazer afundar a Arca de Noé. Sem o pobre homem da arca conseguir salvar seus bichos.

Seu Zé, o meteorologista do sertão, que aprendeu a prever chuva só de olhar pro céu, ao acordar o visitante, molhado até a cueca, explicou-lhe, mostrando a competência que não se adquire nos bancos da escola, o vaticínio consumando que acabou saindo-lhe da cultura cabocla.

“Quando o burro velho desce a orelha esquerda, e desce da paineira até a porteira, pode escrever, vai chover. Assim como arco longe (um arco rodeando a lua), é indício de chuva também”.

Doutor Strange In de Night dependurou o diploma na parede da universidade de Harvard. E passou a viver olhando as estrelas, naquela rocinha linda, que nunca fecha a porteira…

 

 

 

 

 

 

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