Nem sempre a uva fica passa

Entre a uva rosada, fresquinha neste calor rusguento, e as outras qualidades de uva, as brancas doces que por aqui se cultivam, sem dúvida prefiro a primeira. Não por não gostar do verde. Dentre as cores da natureza é a tonalidade que mais se diversifica. Correndo pelos campos, olhando ao derredor, principalmente nesse começo de ano quente, com as chuvas caindo sem tréguas, provocando enchente em algumas partes, noutras ela cai com parcimônia, basta ser observador para aquilatar o quão lindo o verde se mostra: uma tonalidade de verde mais claro, o que se vê na pastaria, uma variante do verde que se desnuda por inteiro no canavial antes de ser colhido, um verde mais afoito, mais escuro, o verde que se torna mais verde nos olhos claros do meu neto querido, outro tom de verde que sobressai na cor das folhas das árvores que moram à beira das estradas, um verde esmaecido que se pinta nas cores dos olhos da linda menina moça que sofreu com a perda do primeiro amor, outros tons de uma verdura ímpar, basta, para isso, estar de olhos e sentidos abertos às maravilhas que a mãe natureza nos ensina a ver. Para ver tudo isso mister se faz desentocar uma palavrinha linda, a meu ver, que se escreve sensibilidade.

Voltando às uvas frias, não geladas a exaustão, falando sobre frutas que nascem grudadas a um arbusto de qualquer dimensão, as uvas recém colhidas, fresquinhas, não as que se compram em caixinhas na rua por onde andamos, ou nas gôndolas cheias de artigos supérfluos dos supermercados, ainda meu paladar pouco exigente prefere apanhar jabuticabas madurinhas subindo na jabuticabeira, mesmo que disputando-as com os marimbondos, depois de uma chuva criadeira.

Sobre o vinho que deriva da uva quero deixar aqui minha estulta observação sobre o que penso deles.

Não sou enólogo, nem enófilo. Sou simplesmente um apreciador de vinhos não muito erudito.

De volta de uma visita de duas semanas a Portugal, aquele país lindíssimo de onde trouxe sonoras recordações (o fado é um ótimo exemplo de boa música um tanto quanto esquecida pela juventude lusitana), pude comprovar o rico sabor dos vinhos ali produzidos. São de preço assaz razoável, algumas marcas de excelente qualidade têm custo mais em conta que uma garrafa de água mineral. Fazendo um parêntesis, água mineral com gás ali recebe o apelido de água salgada. O famigerado vinho do Porto, produzido e engarrafado na cidade de mesmo nome, durante uma degustação numa adega achei o preço salgado demais. Por esse motivo concluí, por bem, adquiri-lo no supermercado. E creio ter feito um bom negócio.

Por falar em vinhos, e em Portugal, ao passar por uma rua inclinada, que leva a outra rua importante do meu passado antigo, daqui, de onde escrevo, se permite ver a casa onde moraram meus pais, e a de outros parentes de sobrenome Rodarte. Rua essa antigamente alcunhada de Rua do Mirante, nos meus verdes anos era de terra batida, agora o asfalto de má qualidade mostra devoradores buracos, antes da caixa d’água da Copasa, bem embaixo de onde mora o Tino, ex-diretor da Ufla, que nunca perde o viço, creio que ele tem mais de oitenta anos, por baixo, hoje uma casinha tinta com as cores da saudade que ficou do dono, um português que lecionava geografia com a proficiência de ter estado em todos os lugares do planeta terra, agora ela ficou vazia.

Ainda bem me lembro de quem ali morava. Nunca adentrei por aquela porta sempre fechada. Nem ao menos tive a audácia de abrir o portão de grades finas. Nem de longe pensei em cuidar daquele jardim agora semi-abandonado. O interior da casa antiga sempre cultivou-me a curiosidade de ali entrar. Mas nunca entrei.

Quem ali morava hoje mora em outro lugar.

Ele se despediu da gente há poucos anos atrás. Morreu sem que pudesse estar presente ao seu funeral. Melhor assim. Desejo me recordar dele vivo, sempre caminhando, devagar, como eu caminho apressado.

Por uma vez apenas o professor, rotariano mestre, no passado governador daquele clube de serviço prestador de exemplares boas ações às comunidades do mundo todo, se fez presente ao meu consultório. Ele que tantas e tantas vezes teve a próstata operada em outra localidade, para tentar atenuar a diminuição do lume da sua uretra idosa.

Quando com ele me encontrava pelas ruas da nossa cidade, com que afabilidade com ele proseava!

Era uma conversa boa, recheada de encômios de ambas as partes.

Creio, não fosse o mal súbito que o acometeu, por certo o saudoso professor de geografia, com tantas e tantas histórias de viagens para contar, viveria eternamente. Embora a eternidade fosse uma utopia a ser alcançada. Sonhada, e não conquistada.

Hoje, quando subo por aquela rua, antes chamada de Rua do Mirante, agora de sapato quase novo, precisando de meia sola, ao passar pela morada que um dia foi dele, quase esbarro numa parreira que se debruça por sobre o muro, quase deixando os cachinhos de uva a descobertos.

Ao ver a plantação de uva, não sei se um passarinho ali depositou a semente, ou se foi o próprio professor que a cultivou, uma nostalgia imensa percorre como um raio meu corpo carente de amor.

Sei que um dia a uva vira passa. Sei que a passa é quando a uva fica velha, perde o sumo, e conserva o doce sabor da saudade. Nem sei se saudade é doce. Nem imagino se se pode fazer doce usando apenas a saudade.

Só sei, dentro da premissa de que nada sei, que o professor Osvaldo Louzada Serra, meu professor de geografia, e de tantos outros, como eu, pode ter morrido, um dia, perto.

Como sei que a uva passa. Como também sei que a saudade fica. Como se perenizam as saudades de tantas pessoas amenas e educadas como foi e sempre será o dono da parreira que se debruça por sobre o muro da Rua do Mirante, onde viveu o saudoso professor, rotariano de escol, um português que adotou o Brasil há tantos e tantos anos atrás.

Ele perdeu o sotaque de Portugal. E nós, patrícios do lado de cá do oceano, perdemos um gajo bom, que, a exemplo das uvas que um dia irão amadurecer na parreira que escapa do íntimo dos fundos da sua casa, hoje entregue às saudades, e as boas lembranças de quando ele caminhava, sempre, pelas ruas da nossa Lavras de tantos problemas, de exeqüível e fácil solução, basta saber que tudo passa, até a uva vira passa, mas, a saudade do professor Louzada, não passará, jamais…

 

 

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