Gostaria de ser lembrado

Longe ainda do meu passamento, espero.

Pois, de aqui de baixo não posso ver abrirem-se as portas do céu ou de outro lugar pra mim desconhecido.

Em meus setenta e cinco anos bem vividos. Com a saúde ainda em dia. Fôlego de gato saltando sacos amontoados na tulha do esquecimento. Espero que meu último alento esteja bem distante do assopro do vento. Que leva folhas nesse outono inverno da minha existência.

Lembranças me assediam.

De quando fui criança, brincando naquela rua que daqui mal se deixa ver devido à escuridão dessa terça feira quase madrugada. Foi lá que tive meus primeiros amigos. Naquela casa tantas vezes citada que infelizmente não existe mais.

Foi exatamente ali que passei meus primeiros natais. E meus aniversários ainda menino.

Lembro-me ainda dos presentes que ganhei no meu quinto cumpleanos. Aquela bicicletinha de rodinhas amarelas não me sai dos pensamentos. Nela aprendi a pedalar.  A me levantar quando levava tombos.  Aquela rua não era como hoje se encontra. Muitas famílias, velhas conhecidas, ali moravam. Hoje essas mesmas casas perderam a identidade. Transformarem-se em clínicas médicas. Ao cair das tardes passo por ali em direção ao velho clube de tantas lembranças ternas. A piscina está bem mudada. O velho trampolim foi retirado. Em boa hora. Se bem me lembro. Um dia, de forte calor, dali saltei. Deixei na minha testa ampla um galo que não cantava e como doía. Cabeça dura eu tinha. Como ainda a tenho.

Nessa quase aurora da minha vida deixo aqui o meu legado subscrito nessa crônica.

Gostaria de ser lembrado, aos que me sucederem. Como quem?

Como um doutor sem titulação? Como um médico especialista que aqui chegou há tempos idos? Que trouxe novidades na sua maleta de médico vindo da Espanha? Usando aquele tamanco e pitando um cachimbo sem saber tragar?

Não somente isso e muito mais.

Gostaria de ser lembrado como quando jogava tênis com meu pai e outros parceiros mais. Hoje de tenista virei torcedor.

Gostaria de ser lembrado pelos amigos que ainda tenho como de pouca conversa. E de muitos escritos.

Gostaria de ser lembrado como médico ou escritor?  São partes indissociáveis do meu eu. Elas convivem harmoniosamente dentro de mim.

Gostaria ainda de ser lembrado. Depois de não mais existir. De um médico que se errou não foi por omissão.  E sim por inexperiência dos verdes anos.  Quando aqui cheguei. Tentando inovar. E não inventar.

Gostaria de ser lembrado como alguém que nunca quis impor sua vontade. Já que sempre pautei minhas ações em comum acórdão com os pacientes.

Gostaria de ser lembrado como um médico sempre presente aos congressos da especialidade. Os diplomas afixados na minha parede atestam essa verdade.

Gostaria de ser lembrado. Por aqueles que me conheceram. Como alguém que não tinha paranca. Irrequietas lembranças pairam dentro de mim desde criança até a idade em que cheguei.

Gostaria que se lembrassem de mim como um sonhador de sonhos bons. Mas esses sonhos de quando em vez se transformaram em pesadelos que a luz do dia ajudou a desvanecer.

Gostaria que guardassem de mim boas recordações. As ruins deixe-as de lado. Soneguem as piores e guardem as melhores.

Gostaria de ser lembrado como um pai devotado. Se não fui bom assim espero ser melhor avozinho.

Gostaria, se me permitirem. Nessa minha crônica testamento. Que, quando não mais estiver por aqui. Importunando a vocês com meus escritos diuturnos. Que não deixem meus livros serem comidos por traças ou cupins. Se não comprarem os que restarem na minha estante. Pelo menos que eles sejam doados a uma instituição que deles faça bom uso.

Gostaria ainda, que fosse lembrado tanto como médico quanto como escritor.

Essas duas metades se completam dentro de mim.

 

 

 

 

 

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