“Dormir pra quê? Se a gente tem a morte inteira pra fazer isso acontecer”?

Dizem que dormir bem. Umas oito horas pelo menos. Faz um bem enorme a saúde.

No que não contesto, mas não assino por cima.

Um exemplo disso exemplifico segundo o dito de um meu amigo de nome Tião Sofrêncio.

O qual, no alto dos seus bem andados noventa e tantos anos. Ele perdeu a conta de quantos foram. Já que não faz aniversário desde que Dom Pedro voltou a Portugal. Depois de saber que um certo presidente atual lhe havia roubado a coroa. Desencantado com as podriqueiras do desgoverno que recém tomou assento na cadeira do palácio das injustiças que temos visto. Onde quem manda mesmo não assina os despachos. E sim aqueles togados que se dizem versados em leis. Um deles mais calvo que bola de bilhar de mais idade que minha bisavó morta no ano bem antes de Cristo nascer.

Tião Sofrêncio. Meu amigo dileto. Cujo bom humor contamina mais do que o recente vírus causador da pandemia. Já deve ter mais anos que os desenganos que a vida sofrida a ele proporcionou.

Aos doze foi operado da perna esquerda. Ela lhe causava uma manqueira que quase o impedia de caminhar. Por sorte do azar a outra era quase boa. Só lhe faltava um ossinho miudinho de nome fêmur. Mas não lhe importava nadica de nada. Pois o que elezinho, menino ainda, mais gostava era nadar.

Tiãozinho, menino artioso, um tanto guloso, cresceu sem saber o que era tristeza. Ria até da própria pobreza. Com seu pai sempre a procura de emprego chegava a casa dizendo que tava difícil. Mas ele passava os dias na mesa de um bar. E ali se embebedava. De volta a casa com aquele bafo de onça depois de comer carniça podre.

Aos dezoito, o jovem Tião, afinal, pensou andar sobre as próprias pernas mancas. Mas elas claudicavam devido à manqueira. Sua vida nunca foi de celebrar nada que prestasse.

Aos quase trinta seus olhos passaram a não enxergar direito. Ele dizia que uma cerração escura lhe empanava a visão. Por sorte um médico dos oio. Compadecido de sua situação. Acabou operando-lhe a vista esquerda. Mas era a outra que sofria da tal cachoeira. Muitos diziam catarata. Mas hão de concordar comigo que cachoeira é mais poético.  Não carece dizer que de nada adiantou a tal operação. Foi mais um erro médico sem punição.

Já aos quarenta apareceu-lhe mais um defeito no joelho antes bom. O outro não prestava. De tanto ajoelhar na missa das dez Tião Sofrêncio sofreu mais um sofrimento. A sua mão esquerda começou a tremer igualzinho a varinha de bambu ao sabor da ventania de dezembro. A outra, solidária a primeira, começou e terminou do mesmo jeito.

Tião envelhecia a orelhas vistas. Aos cinquenta passou a dormir no cômodo de banho. Pois urinava de minutos a segundos. A cama ficava ensopada de urina, se porventura de uma desventura dormisse nela.

Aos quase sessenta. Prestes a chegar ao meio daquela idade. Dada a sua falta de capacidade de passar a noite em claro. Tinha um medo danado da escuridão. Dormia de luz acesa. Por sorte dele. Já que não tinha ela para dormir juntinho. Tiãozinho acabou perdendo não o que tinha de mais precioso. Que era a sua dentadura novinha que dormia num copo d’água cheio pelas beiradas. E sim sua cueca comprada à prestação e ainda não paga. Por faltar grana o pobre Tião devia mais que deveria. Mas sempre dizia que um dia iria pagar. Quando? Não se sabe. Talvez no dia de São Nunquinha.

Já passado dos oitenta. Não sabia precisar quantos seriam. O velho Tião acabou perdendo a razão. Coisa que nunca teve. Sempre viveu e sobreviveu, até aquela idade, às turras com ela. Levando uma surra dela. Já que sempre dizia, queiram ou não: “os limites entre a sanidade e a louquice é mais tênue que o buraco da agulha”. Tentem enfiar a linha sem óculos. E constatem o que deixei escrito.

Naquele dia em que nos encontramos notei uma estranheza nos olhos do amigo Tião. Eles estavam embaciados como se uma cerração densa tapasse sua menina dos olhos.

Como de sempre ele não havia dormido nadinha de nada. Ele passou a noite em claro, tentando dormir na escuridão.

Foi quando ouvi dele essa expressão: “dormir pra quê? Se a gente tem a morte inteira pra ver isso acontecer”.

De fato e com todo direito. No dia seguinte encontraram o velho Tião com um largo sorrirão a enfeitar-lhe a face. Ele acabou dormindo para sempre. E penso ter acordado novamente num lugar onde noites e dias se equivalem. Pra onde todos nós iremos. Mais cedo ou no mais tardar das noites mortas.

 

 

 

 

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