Não me lembro mais

Lembranças sempre fizeram parte de minha vida.

Principalmente aquelas da infância, passadas naquela casa que daqui se vê pelos fundos.

Foi naquela rua, de nome Costa Pereira, não sei de quem ela herdou o nome, na qual passei a melhor fase da minha existência.

Ali não nasci. Mas foi lá, aos cinco anos, que fiz meus primeiros amigos, junto aos meus pais queridos.

Ainda me lembro das primeiras vezes que adentrei àquele clube. Ele hoje está de portas fechadas. Sem previsão de abrir de novo.

Foi naquelas quadras, hoje remodeladas, quase perfeitas, onde aprendi que pelo esporte se faz homens de bem.

Foi lá que comecei a jogar tênis. Meu pai assim o fazia. Junto a alguns amigos que o tempo levou embora, para viver com Deus.

Foi lá que aprendi a nadar. Quantas vezes me lancei daquele trampolim bem alto. Hoje ele não existe mais.

Foi naquele campão que jogava futebol. Por não tomar jeito naquele esporte acabei me decidindo pelas raquetes.

Foi naquele hospital que comecei minha vida profissional. Era naquela rua, de tantas lembranças eternas, que viviam tios e avós.

Foi exatamente ali que aprendi que ter amigos é fundamental para nosso crescimento. Muitos deles já partiram rumo ao céu dos anjos.

Lembranças fugidias ainda fazem parte dos meus melhores momentos. Da linda árvore de Natal que minha mãe fazia. Na sala de visitas eram espalhados presentes. E eu, dentro da minha curiosidade de menino, mal via a hora de acordar no dia seguinte. Ia de mansinho desembrulhar um a um. Aqueles embrulhos a mim endereçados. Os outros deixava de lado. Não pertenciam a mim.

Foi nesta manhã fria do mês de junho que me recordei do meu pai. Já é inverno. Estamos em meio a uma pandemia. Que não tem hora de terminar.

Faz vinte anos que ele se foi. Seu aniversário é em começo de agosto. Tenho a sua fotografia, junto a mim, do lado direito do meu computador.

Ainda me lembro dele em saúde perfeita. Em parceria comigo jogando tênis. Ou na gerência do Banco do Brasil.

Em outra cidade ele se aposentou. No entando não encerrou sua carreira no trabalho. Ele sempre dizia: “o ócio é o começo do fim”.

Pouco tempo ele exerceu a advocacia. Por ser honesto demais ele se desencantou com a morosidade da justiça. E logo uma cruel enfermidade dele se apoderou.

Aos pouco mais de setenta anos ele caiu no leito. Aos setenta e sete anos descansou.

Ainda me lembro de sua enfermidade. A doença de Alzheimer faz sofrer a todos aqueles que têm a desventura de estar em volta. Creio que menos a quem padece de tal doença.

O paciente mal se lembra da sua identidade. A expressão que lhe passa nos olhos é como se fosse um nada perdido no meio do nada.

Meu saudoso pai veio a se despedir de nós em meus braços de médico. Dado ao seu estado lastimável até desejei que isso acontecesse. Ele não se lembrava de mais nada.

De nossas partidas de tênis. De suas petições impecáveis. De seu zelo pela carreira no banco. Do carinho que nossa mãe tinha por ele. Nem mesmo o amor que nutria pela nossa querida Rosinha. Que ainda vive ali. Naquela casa da Rua Costa Pereira.

Um dia, quando ele estava adoentado, ainda me lembro de quando o pilhei em fragrante, naquele carrinho cinzento, que ele teimava em dirigir, sem a menor condição, tentei tomar-lhe a chave das mãos, e ele, teimoso que era, me afirmou, categoricamente: “nem me lembro mais de quem sou. Confesso que perdi a minha identidade”.

E eu, neste vinte e nove de junho, dia frio, de inverno, ainda me lembro, com saudades, do meu querido pai.

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