A moça que perdeu a identidade

A tal identidade que passamos a carregar no bolso tem vários matizes.

Tanto pode ser a identificação de quem somos assim como o tal documento obrigatório de uso a qualquer cidadão. E quem na verdade somos?

Um indivíduo inserido numa comunidade? Ou qualquer que não dispõe de nenhuma identidade?

Pensando desta maneira uma pessoa, morador de rua, que não porta nenhum documento, preso por estar assim, desprovido de tudo, um nada, um zero a esquerda, deveria ser considerado um pária social? Ou um cidadão qualquer. A quem a sorte virou a cara. E perambula pelas ruas a cata de migalhas?

Infelizmente esta é a realidade nua e crua. Um dia destes, a caminho para o consultório, era cedo ainda, ao passar por um restaurante deparei-me com um homem estendido no passeio. Todos pulavam sobre ele. Parece que era um cachorro morto.

Tentei acordá-lo. Percebi que ele estava embriagado. Semimorto o pobre coitado. Não tive sucesso na minha intenção de restitui-lo a vida. E que vida era aquela?

Era mais um sem lenço ou documento. E não era sob um sol de quase dezembro.

A tal identidade faz falta. No entanto ela não é capaz de devolver-nos a condição de cidadãos.  Principalmente quem nasce aqui. Neste país continental que privilegia os mais afortunados em detrimento dos que nada têm. A desigualdade social é tão aviltante que nos machuca a sensibilidade. Que dentro de mim brota como água cristalina que emerge nas fontes.

Conheço esta moça desde quando aqui cheguei. E faz tempo que isso aconteceu.

Seu nome era Mariela. Ou talvez seja Manuela? Tenho dúvidas.

Ela se decidiu pela profissão de enfermagem. Amava tratar as pessoas. Com a mesma carinha boa com que a conheci.

Naqueles anos bons ela trabalhava no mesmo hospital onde comecei a vida de médico. Quase todos os dias nos encontrávamos nos corredores do mesmo hospital.

E o tempo passou. Os anos deixaram rastros. Envelheci.

Ainda na ativa, um dia destes, passei pelo mesmo hospital. Em visita a um aparentado.

Foi quando me encontrei com ela. Mariela, ou Manuela, estava irreconhecível.

Olheiras profundas marcavam-lhe o semblante exaurido pelos anos. Os cabelos brancos como neve. Ela usava máscara.

Durante o nosso curto colóquio pedi-lhe que retirasse a máscara. Ela assim o fez.

Falamos de tudo um pouco. Da vida que levávamos.

Do trabalho exaustivo nestes tempos de pandemia. Manuela mal tinha tempo de voltar a casa. Ela trabalhava no centro de tratamento intensivo cuidando dos pacientes afetados pelo coronavirus.

Mal tinha tempo de pensar nela mesma. Vaidosa, deixou os cabelos embranquecerem prematuramente. Não mais tinha tempo para cuidar da sua beleza extinta. E ela não era tão velha assim.

A marca da máscara se deixava ver em sua face desgastada pelo tempo. Um roxo evidente passeava pela sua face com sinais evidentes de cansaço. E Manuela, ou seria Mariela, não se queixava da vida. Era feliz mesmo assim.

Foi quando tentei dirimir a dúvida que me assaltava. Seria mesmo Manuela? Ou teria trocado de nome?

Foi quando ela me disse: “meu nome em verdade é Manuela. Acontece que, com o tempo, acabei perdendo a minha identidade. De tanto trabalho nem tempo tenho de pensar em mim”.

Dali saí pensando nas operosas enfermeiras que se dedicam de corpo e alma a cuidar dos enfermos. Elas de fato perdem a identidade. Mas nunca irão perder o respeito que elas inspiram.

 

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