Na lama da desesperança morta

Como choveu a noite passada.

Relâmpagos ribombavam riscando o céu de amarelo. Faíscas se deixavam ver na abóboda celeste.

Era dezembro em seu começo. Em novembro a chuva não caiu como esperado. Era tempo do plantio do milho. Pra dar de comer às vacas.

Zé da Tiana acordou em sobressalto. Sonhou, durante a noite, com uma chuvinha mansa. Daquelas que fertilizam a terra sem, contudo, provocar danos à propriedade.

O relógio de cabeceira assinalava cinco da manhã. Pela janela entreaberta percebiam-se os pingos de chuva tamborilarem pela vidraça.

Zé pulou da cama em sobressalto. Percebeu que a hora ia ao longe. Acostumado às madrugadas.

Naquela fase da vida Zé colecionava quase setenta anos. Contava os dias, para no próximo dia sete, comemorar a data com os poucos amigos que possuía.

Zé enviuvou há exatos cinco anos. Apaixonado pela esposa, a única mulher com quem dividiu os cobertores, nunca mais quis saber de outra rapariga na sua vidinha descomplicada.

Desde então vivia solitário naquela rocinha encantada. Não se acostumava nunca com a vida na cidade.

Quando por ali passou teve uma decepção que até hoje se recorda.

Empregado numa padaria, trabalhador contumaz, ainda se lembra de quando o estabelecimento foi assaltado. A ele foi imputada uma culpa que não tinha. Passou dois dias inteiros no xilindró. Dali saiu prometendo nunca mais voltar a viver naquela localidade apinhada de gente. Que não sabe o que o quanto é bom acordar ouvindo o canto do galo, o matraquear das maritacas, o grunhido faminto da porcada no chiqueiro, o canto do sabiá apaixonado pela fêmea.

Desde então Zé da Tiana voltou a viver na roça. Ali tinha o umbigo enterrado. E o coração batia forte quando ouvia o mugido da vaca e sentia cá dentro o cheiro adocicado do esterco do curral.

Naquela manhã chuviscosa Zé acordou com um estranho pressentimento. Sonhou com a chuva que em verdade despencou do alto. Com o pasto verdinho. Com as vacas com os mojos lotados de leite. Com os bezerrinhos prontinhos a primeira mamada.

Assim que deixou a casa, depois de um café requentado, acompanhado de uma broa de milho, feita trasanteontem, acabou atolado num barro grudento. Não se importou com o contratempo. E foi ao curral ordenhar a vacada.

A chuva lambia a terra com sua língua molhada. Não se via o azul do céu. Apenas a cinzentice do dia.

Antes das seis da manhã terminou a primeira ordenha do dia. Às oito horas, no alto do morro agudo, buzinava o caminhão leiteiro.

Ainda tinha tempo para tratar da porcada faminta. Que no chiqueiro mais embaixo grunhia em altos decibéis.

A chuva não dava tréguas. Chovia a encher piscinas com aquela água barrenta.

Assim que o valente Zé da Tiana acabou de encher os três latões de leite quentinho desabou uma tempestade de fazer encher os olhos de água.

Foi o bastante para a estradinha ficar intransitável. Nem a carroça, puxada pelo eunuco Marreta, um cavalão vermelho, focinho branco, seria capaz de puxar a carroça morro acima.

A chuva durou uma semana inteira. A produção do leite azedou. Nem queijo foi possível fazer.

O prejuízo do infeliz Zé da Tiana foi enorme. Teve de vender metade das vacas para saldar a dívida com o banco perdulário.

Desde então Zé acabou sem nada para fazer. Foi obrigado a vender a propriedade. Recebeu do agiota um cheque sem fundos. E passou a esmolar na cidade.

Foi quando o encontrei numa esquina da vida.

Trocamos uma dúzia de palavras.

Choroso, angustiado, ouvi da boca do desinfeliz Zé isso que passo a vocês: “até hoje não me conformo. Vendi a única coisa boa que possuía. Agora, sem mulher, sem as minhas vacas queridas, só tenho a me lastimar. Naquele dia da chuva forte acabei atolando no barro. Na lama da desesperança morta”.

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