O céu está bem servido

Corre, a boca miúda, que na Terra dos Ipês e das Escolas existem duas famílias cujos sobrenomes indicam um quezinho de insensatez. Ou melhor dizendo: louquice.

Mas sempre tive comigo que o limite entre a lucidez e a loucura é tão tênue quanto um buraco de agulha. Ou um fio de linha. Na linguagem de quem costura.

Sou Rodarte por parte de mãe. E ele, a quem rendo minhas homenagens, pós- mortem, assina Vilela. Dois sobrenomes assaz conhecidos em nossa terra. Quem não se lembra do Rubão? Meu vizinho, por quem nutria alta estima. E do não menos famoso Francisco Rodarte, meu tio Chico, meu primeiro revisor.

Ambos se foram há alguns anos. E deixaram uma lacuna enorme em nossa cidade.

Aqui cheguei em meados de um mil novecentos e setenta e sete. Depois de um ano inteiro aperfeiçoando-me na minha especialidade em terras de Espanha.

E ele, colega de fardas, já estava por aqui.

O doutor, que merece como poucos estas linhas curtas, exercia dupla especialidade.

Foi ele quem me operou as amígdalas. Mas também sabia olhar no fundo dos olhos com maestria especial.

Aquele doutor, um dos baluartes da medicina em nossa região, sempre exibia um sorriso farto durante as nossas prosas que terminavam num gentil abraço. Foi ele, junto a alguns colegas, que hoje não mais estão aqui, os responsáveis pela fundação de um hospital que não existe mais. Cito, perdoem-me se me esqueço de algum nome: doutor Evaristo, o saudoso Pedro Zica, indo mais longe, doutor Álvaro, e outros mais.

Este médico por quem ainda tenho em alta estima nos deixou há pouco tempo. Soube do seu passamento por um noticioso da internet. Já que os jornais impressos quase não são editados mais.

Doutor Vilela, mais conhecido pelo diminutivo, Geraldinho, era uma pessoa acima de qualquer comentário. Sempre afável, cordial, já foi fazendeiro. Ainda me lembro, saudades se vão, de quando fui visitá-lo em sua fazenda. Que vacas baldeiras faziam parte do seu plantel.

Sucede-lhe uma esposa admirável. Dona Zélia é uma pessoa sem defeitos. Amável, sorridente, sempre me recebe com o melhor dos sorrisos. Filhas fazem parte de sua prole. Ele não deixou  sucessores em nossa profissão assaz complicada.

Uma vez fui visitá-lo em seu apartamento. Doutor Geraldinho me recebeu com a cordialidade costumeira. Deixei-lhe em mãos um dos livros da minha lavra. Ele me olhou, de soslaio, e me agradeceu o presente.

Meu colega estava ausente das nossas ruas. Já bastante idoso estranhei-lhe a falta.

Num dia deste ele foi convocado a trabalhar no céu. Deve estar feliz operando a catarata dos anjos. Ou investigando a garganta de algum anjinho que precise de seus cuidados.

Doutor Geraldo Vilela se foi. Mais um nobre esculápio nos deixou órfãos dos seus conhecimentos.

Sinto-lhe a ausência. Daquela pessoa boa. De fala aguçada. De andar altivo. O qual conheci há tanto tempo.

Ao doutor Geraldinho as minhas sinceras reverências. O senhor foi importante. E ainda o é. Nesta cidade que teima em não se recordar da sua história. Dos seus vultos ímpares. Dos médicos que já partiram. Deixando incontáveis lembranças que não se apagam jamais. Dentro das minhas reminiscências. De um passado que infelizmente não volta. Apesar de sempre cultivar, dentro de mim, coisas e loisas boas. Como as lembranças dos meus pais.

Hoje olho pro céu e não percebo o azul. Mas na certeza que ele está bem servido, despeço-me do doutor Geraldinho com o meu abraço. Até breve. Choro eu.

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