Mamede e a aposentadoria

Naquele ano de dois mil e dezoito o não tão jovem ancião completava setenta de oito anos de vida.

Sempre viveu para o trabalho. Nas folgas, que eram poucas, Mamede arrumava outro serviço.

Era faz tudo de um hospital. O mesmo ao qual sempre  dei meus melhores anos.

Ajeitava as torneiras que vazavam, substituía a fiação gasta pelo tempo, trocava lâmpadas quando elas se queimavam, e quando sobrava tempo era o motorista que transportava pessoas de suas casas ao hospital.

Mamede não enjeitava trabalho. De quando em nunca o via cochilando na porta da enfermaria, ou deitado num cantinho só dele conhecido.

Era estimado por todos que ali militavam. Tanto as zelosas enfermeira, quanto os serviçais menos graduados, assim como os médicos mais antigos, tinham pelo profissional, um dos decanos daquela casa que tantos serviços prestam à comunidade, o maior respeito e carinho.

Mamede chegava cedo à Santa Casa. Sempre com aquele olhar esperto, trazendo uma caixa de ferramentas nas mãos. Logo ia aonde era procurado. Fosse no andar mais baixo, ou subindo pelo elevador quase sempre estropiado.

Ainda me lembro, faz anos tantos que me esqueço, de quando, depois de uma chuvinha tosca, o piso térreo enchia-se de água mal cheirosa.

Quem acorria ao andar parcialmente inundado? Era o prestimoso Mamede. Sempre de cara sorridente, pilheriando com um, brincando com outro, com aquele sorrisinho maroto a mostrar-lhe os dentes em falta.

No entanto os anos caminham como caminha a humanidade.

A idade foi galgando as costas do servil Mamede.

A coluna torta não suportava tanta atividade. Recurvado sobre seu peso esquálido lá ia o Mamede ao trabalho.

Assim que completou setenta quase não podia caminhar. Fazia-o com enormes dificuldades. Mesmo assim não perdia um dia sequer de trabalho.

Aos quase setenta e sete o trabalhador contumaz se viu em dificuldades. Numa manhã, bem cedo, quando se levantou do leito, sua esposa dedicada teve de tirá-lo da cama.

A coluna do Mamede travou. Nunca o vi com tamanha dor.

Naquela manhã de setembro, dia vinte, bem me lembro, assim que passei pelo hospital percebi uma ambulância entrando pelo pronto atendimento.

Como ainda tinha tempo, a primeira consulta da manhã seria depois das oito, acorri ao mesmo local onde a ambulância estacionou.

Deitado numa maca trôpega estava o pobre Mamede, retorcendo-se em dores. Ajudei-o a sair dali. Um enfermeiro e eu o transportamos a ortopedia, para tentar minorar-lhe o sofrimento.

Logo ele me reconheceu. Cumprimentou-me com o mesmo sorriso de troça. Interpelei-o sobre a aposentadoria. Como de outras vezes.

Mamede, tentando disfarçar a angústia que sentia, sabedor que o dia fatídico havia chegado, de descansar, finalmente, assim me confidenciou: “meu amigo doutor Paulo. Sabe o quanto o estimo. Temos quase a mesma idade. E o senhor ainda continua na ativa. Como vou fazer para ficar em casa, sem poder ser útil a tantas pessoas que me estimam tanto?  Tenho a impressão que isso vai ser o começo do meu fim”.

Deixei o amigo Mamede entregue ao seu lamento. Não imagino quando ele será capaz de trabalhar de novo. Tomara bem pronto. Bem o disse meu saudoso pai: “o ócio é o começo do fim”.

Hoje penso, com meus quase setenta anos. Tomara não me aposente nunca. Pois, caso isso venha a acontecer, talvez seja em verdade o começo do meu fim.

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