Mudar de país ou mudar o país?

Zé da Ponte nunca teve sorte na vida.

Apesar de predestinado ao trabalho esta nunca lhe foi a sina.

Estudar não pode. Filho de outros mais nove, em casa faltava de tudo um cadinho.

A comida, quando dava, devia ser repartida com mais nove irmãos. Todos nascidos em hora errada. Enjeitados que eram, frutos de uma noite de amor que nunca existiu.

Zé era o mais jovem de todos. O rapa do tacho. Um tacho furado. Onde era feito o almoço. E esquentava o que sobrava para a janta. Quanto ela se dava.

Os pais de Zé não paravam em casa. Deixavam a meninada abandonada. Cada um se virando como podia.

Zezinho, o mais pequenino, era o que mais sofria com a falta de carinho dos progenitores. Eles só tinham olhos para os mais velhos. Uma fila enorme que dobrava quarteirão. O motivo saltava aos olhos. Todos tinham mais capacidade de ajudar na renda de casa. Eram bracinhos raquíticos a serviço da contravenção.

Os pais de Zé da Ponte, apelido herdado por causa de um acidente antes acontecido, eis que num dia chuvoso, como o de hoje, quando a família foi atravessar uma pinguela, eis que o pobre menino acabou sendo cuspido dela. Caindo de cara num corguinho sujo, sendo resgatado todo lambuzado de merda, até hoje sente-se o cheiro dela ao passar perto do desventurado menino.

Quis o destino que o infeliz Zezinho contrariou as estatísticas de longevidade até então mostrada na televisão. Adulto se transformou. Aos trancos e desbarrancos a infelicidade o pilhou.

Teve de sair de casa antes dos quinze anos. Viveu na rua da amargura. Experimentou a borduna dura do guarda. Foi aviãozinho no tráfico. Apesar de nunca ter experimentado uma guimba de cigarro. Os vícios lhe causavam asco.

Zezinho nunca teve oportunidades na vida. Perambulando a esmo pelas ruas, dormindo debaixo das marquises, era assim que Zezinho pensava viver. Embora não se possa chamar de vida o seu viver.

Ele bem que tentou um trabalho digno. Deixava currículos de uma linha apenas na porta de estabelecimentos. E quando ali voltava era enxotado como um cão sarnento.

Aos vinte anos, completos naquele dia, pensou que finalmente havia encontrado seu caminho. Foi empregado com ajudante de padaria. Acordava em plena madrugada. Nunca faltou ao serviço. Acontece que, por uma fatalidade, eis que numa manhã bem cedo faltou luz na casa de pães. Sabem quem foi responsabilizado pelo incidente? Não foi outro senão o infeliz Zé.

De novo sem trabalho. Sem dinheiro para comprar um pãozinho sequer, foi a ele imputado como autor de um roubo. Só que não era dele a autoria. Mero circunstante amargou cadeia por uma semana inteira.

Dali saiu pensando besteira. Virou gatuno de verdade. Em más companhias passava os dias. Varava noites. Começou a beber.

Era véspera de eleição. Desconsolado com a penúria em que vivia, um dia, era uma sexta-feira chuvosa, percebeu várias pessoas empunhando bandeirolas numa esquina movimentada. Zé da Ponte afinal pensou ter encontrado a fórmula mágica de ganhar algum dinheiro.

Perguntou, em meio aquela agitação enorme, a quem deveria procurar para fazer parte daquela turma de desocupados. Quem sabe ganharia alguns trocados. Ou até fizesse parte do grupelho que ajudaria aquele candidato na futura eleição.

Mas não foi desta vez que a sorte lhe sorriu. Dali saiu mais uma vez sem eira nem beirada. Todas as vagas foram ocupadas. E o candidato havia empenhado até a sogra na sua campanha derrotada.

Mais uma vez o pobre desinfeliz Zé da Ponte se viu sem nada que fazer. Voltou ao velho viaduto. Tomou chuva. Pegou uma pneumonia grave. Por sorte uma alma piedosa dele se compadeceu. Foi internado pelo SUS num hospital de periferia. Recebeu alta antes da hora. Voltou a rua em estado ainda pior.

Foi quando o encontrei quando descia a rua. Era uma terça-feira de setembro. Passada a metade do mês.

Quando vi o Zé uma sensação estranha tomou-me as entranhas. Parei por um minuto.  Percebi, naqueles olhos baços, uma tristeza imensa. Aquela cara de desconsolo fez-me pensar na vida.

Quantos Zés perambulam pelas ruas do nosso país? Quantos desempregados existem?

E como ser feliz numa situação calamitosa como a dele?

Aqui cheguei pensando, com meus dedos: como fazer para mudar o status quo? Não é possível ficarmos indiferentes ao amargor por que passam os nossos semelhantes. Ou muda o país, ou mudamos nós? Talvez seja mais fácil mudar o país. Não mudar de país, como pensei um dia.

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