Imagine o Zé da Mula

Hoje amanheceu um dia nublado. Frio, de fazer enregelar as orelhas.

Mal se via o céu. Mais tarde talvez ele se torne azul. Tomara que a chuva retorne, tintando de verde a natureza, ávida pelas gotas de água derriçadas do alto.

A seca tem sido inclemente nos ares daquela rocinha perdida nos cafundós de Judas. Ninguém passaria por ali não fosse por algum desvio de rota. Já que não existia nenhuma indicação se a próxima parada seria na curva sinuosa, ou na subida rombuda.

Zé da Mula, apelido herdado por um motivo singelo. Ele tinha uma mula baia, forte, boa de charrete e de cupim. Diziam, nos arrabaldes, que eles tinham um caso. E um jumentinho nascido na entressafra era metade do Zé e a outra da mula baia.

Naquela noite choveu a deixar canivetes afiados. Choveu tanto que o açudinho perto da casinha tosca encheu-se e transbordou.

Zé da Mula passou a noite em claro. Apesar de ter sido uma noite escura, nenhuminha estrelinha se deixava ver.

Acordou sem ter dormido. Passou pela cara amanhecida uma ducha fria. Tomou um café requentado acompanhado de uma broa de milho azedo. E foi ao curral ordenhar a vacada, que já o esperava atolada no próprio estrume, feito barro viscoso, na entrada da sala da ordenha.

Assim que deixou sua casa, naquela pressa atrasada, acabou torcendo o tornozelo. Fazendo-se de duro, embora sentisse uma dor danada, não teve como não terminar o serviço. Ainda, como se não lhe bastasse a desdita, quando foi apertar as tetas de uma vaca mestiça ela escoiceou-lhe o traseiro magro o que o impediu de assentar-se àquele banquinho tosco.

Finda a ordenha. O caminho leiteiro passaria a alguns minutos apenas. Como a chuva tornou impossível a descida do velho caminhão até o tanque de expansão mais uma vez Zé da Mula teve de recorrer ao auxílio da amiga. Encontrou-a de má vontade. Dormindo debaixo de uma mangueira que já deu manga, e hoje apenas serve de ninho para uma velha coruja.

Não foi fácil atrelá-la a carroça. Ela relinchou, alegando que Zé estava em dívida com ela. Não lhe dando o carinho que julgava merecedora. Mesmo assim concordou. Levou os três latões de leite quentinho ao cume do morro agudo. No meio do caminho empacou. Não por má vontade. E sim por causa do barro fresco que acabou impedindo a velha charrete de chegar ao fim do caminho.

Zé, bom de braço, levou os três latões de leite num velho carrinho de mão. Foi a conta de o velho caminhão levar a produção de três dias inteiros.

Zé desatrelou a mula da carroça. E deixou-a partir depois de um beijo em seu focinho. Aquele gesto de carinho selou uma amizade antiga.

Com ainda era cedo, menos de nove horas, e a chuva não dava tréguas, chovia a encher caçambas de caminhão, Zé da Mula ainda tinha várias tarefas a concluir. Arar a terra molhada, nela deitar sementinhas de milho, e esperar pacienciosamente a hora de o milho brotar.

Mas, como nem tudo que reluz é ouro, a roça de milho não vingou. Faltou chuva na hora certa. E os pezinhos de milho pendoaram. Não dando espigas que prestassem.

Naquele ano ingrato Zé teve prejuízos enormes. Não sabia quando poderia pagar o financiamento feito ao banco perdulário. Mas, como honesto que sempre foi um dia pagaria a conta.

Hoje desci a rua pensando nos meus problemas. Eram tantos quantos eu não imaginava.

Algumas duplicatas estavam por vencer. Faturas, boletos, entulhavam o tampo da mesa. Teria de ir ao banco, antes de esperar no consultório a chegada dos primeiros pacientes. Faltavam folhas de cheque. E logo os cobradores fariam fila na porta de minha casa.

Antes de aqui chegar o sol mostrou a cara iluminada. Não havia sinal de chuva. As nuvens descarregavam-se de água.

Um a um os pacientes foram aparecendo. Timidamente contaram-me a suas histórias. O derradeiro foi um homem da roça. Seu nome, ou seria apelido – Zé da Mula.

Depois de ouvir-lhe os queixumes, coisiquinhas sem importância, como as minhas, de saber o quanto seus problemas eram bem maiores do que os meus: faltou chuva, a roça de milho não foi adiante, a dívida com o banco estava vencida, a mula baia acabou estropiada, por uma queda mal dada, a porcada faminta não deu peso para vender ao açougue, e por aí vão seus percalços, senti certo alívio no meu peito cansado.

Hoje desci a rua sentindo uma angústia por dentro. Estava frio, ventava. De repente o sol se abriu. Sorridente, de porteira escancarada.

Assim que meu último paciente deixou a sala de exame, desejando-me saúde e alegria, sobretudo, nunca mais vi Zé da Mula. Ele saiu alegre, contando piadas de gente da cidade.

Foi quando desfez-se meu desencanto. Eu, com meus problemas que julgava tantos, eram figurinhas não carimbadas frente aos do querido Zé.

Enquanto eu me lastimava frente aos meus incômodos, imaginei o pobre Zé com seus enormes quebrantos.

Agora sinto-me mais aliviado. Na cidade temos os nossos problemas. E quem não os têm? Quando se vive deve-se estar preparado para enfrentá-los. Zé enfrenta-os estoicamente. Por que não eu? Se sou bem mais letrado? Talvez a minha tristeza se deva a tantas letras juntas. Que se chama sensibilidade.

Deixe uma resposta