Antes, entre nós, apenas aquele corguinho de pedrinhas brancas se fazia notar

Não faz tantos anos assim. Ainda me lembro como se fosse hoje.

Costumava atravessar a pé aquele pequeno obstáculo para visitar o amigo. Mal molhava a barra da calça. Ia me equilibrando naquelas pedrinhas brancas olhando cautelosamente o riozinho de águas cristalinas que por baixo passava. De vez em quando escorregava naqueles pedregulhos e molhava os pés. E dali saía sem maiores percalços. Lambarizinhos de rabos vermelhos fugiam de mim.

Do outro lado das minhas terras vivia o amigo Tião do Cervo. Como ele era querido por todos que o conheciam! Cuidava dos netos, sobrinhos, aparentados, com o mesmo carinho como se deles fossem.

Uma enorme horta de couve existia naquele pedacinho de terra. Tião não plantava para o próprio consumo. Eram muitas as verduras que ali nasciam. Mandiocas macias, gilos graúdos, beterrabas enormes, vermelhas de doer os olhos, abobrinhas verdinhas, e muitas outras iguarias que não me lembro de quantas seriam. Eu as levava como presente em grandes sacos brancos. Eram sacos de ração a dar as vacas. Em retribuição apenas deixava um abraço fraterno no amigo Tião. E meu muito obrigado. Carregado de emoção. Oferecia a ele meus préstimos de médico amigo. No que ele agradecia com votos que voltasse outro dia. “No próximo sábado”, dizia.

Assim nos frequentamos de tempos em tempos.  Depois o pequeno ribeirão foi sepultado pelas águas plácidas da represa do Funil. Não sei por onde andam as pequenas pedrinhas brancas. Creio que elas estão ali mesmo, no fundo, bem no fundo, afogadas pelas lembranças dos dias quando por ali passei. Os lambarizinhos ariscos tomara tenham se adaptado a nova realidade. Hoje eles ainda servem de isca a peixes maiores. Cada vez mais escassos naquele lago pouco piscoso.

O rio Grande foi domado. As suas corredeiras quase não se vêem mais. Com elas se foram os peixes, a procura da desova em outros rios. Por aí afora. Até desaguarem em mares distantes.

Tião do Cervo um dia se foi. À sua ausência ficaram as saudades. Da sua bondade, da sua fala macia, da sua cordialidade.

Aquele pequeno ribeirãozinho não existe mais. Ele está sepultado no fundo do lago do Funil.

Antes visitava o amigo Tião sem precisar de embarcação. Ia pelas próprias pernas. Equilibrando-me naqueles pedriscos brancos e escorregadios. Tentando evitar um escorregão.

Agora observo a casa do amigo Tião com os mesmos olhos de ternura. Do outro lado do lago.

Ali, naquele pequeno sítio, brincam netos, bisnetos, parentes vindos de Ijaci. Aos sábados ouço-lhes a algazarra. Do lado de cá. Não mais tenho vontade de passar ao outro lado. O amigo Tião não mais vai me receber com aquela cordialidade costumeira. Com aquele abração fraterno. Com o seu volte sempre. As suas verduras não mais são plantadas como dantes. As lindas couves suculentas não me servirão à mesa. Bem como as beterrabas gigantes. Ou as abobrinhas que se desmanchavam na panela em fogo brando.

O corregozinho foi consumido pelo lago profundo. As pedrinhas brancas não existem mais. Os lambaris se mudaram. Tomara algum aparentado ainda nade em algum ponto do lago do Funil. Hoje, para ir ao outro lado preciso, ou ir a nado, ou de um barco qualquer. O meu foi roubado. Algum pescador dele se apoderou. Não mais conseguirei resgatar meu barco furtado. Como não mais lograrei êxito em resgatar o passado. Tantas vezes lembrado. E por que razão sepultá-lo?

Aquele corguinho raso, que antes me separava do amigo Tião, se foi. Agora ele mora no fundo do lago. Cercearam-lhe o desejo de ir adiante. Um dia irão cercear o meu. Quando vier a morrer. As pedrinhas brancas e lisas da mesma forma repousam inermes no fundo da represa. Se ainda respiram? Não sei.

Estive pensando, na noite de hoje. Por que não, naqueles tempos distantes, não tive a ideia de colocar numa garrafinha de boca larga, um trechinho daquele corguinho tão lindo, inserindo algumas pedrinhas brancas, um ou outro lambarizinho peralta, além da saudade do amigo Tião, tudo carinhosamente guardado. Na intenção de, em tempos de agora, soltar o conteúdo no lado de cá das minhas terras, refazendo a travessia de antão? Assim terei sucesso nas minhas pretensões de reviver tempos bons que se foram. Nas águas velozes daquele riacho que não corre mais. Como eu ainda corro, tentando voltar atrás.

 

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