Belas lembranças

Hoje acordei no pé da noite.

Foi um fim de semana enfadonho, pesado, rotineiro.

Não pude correr como sempre faço. Passei horas vazias defronte a televisão. O sofá exibe até agora a tatuagem do meu corpo cansado de nada fazer. Como a atividade física faz bem! De segunda a sexta a academia me espera, no debrum da tarde. Chego a casa cansado. Exaurido mas reconfortado pelas horas passadas ali, entre pessoas sempre de bem com a vida, exalando saúde por todos os poros e trazendo na face aquele sorriso franco, amistoso e tranquilo. Por esta razão durmo cerca de seis horas. É o bastante para um acordar disposto. Para enfrentar as segundas que nem sempre são iguais as irmãs.

No dia de hoje, doze de março, passei mais da metade da noite entregue a lembranças antigas. A morte esperada de uma tia querida talvez seja a responsável por tais lucubrações.

Tia Dora se despediu de nós após anos e anos de enfermidade. Ao passar por sua casa, na mesma rua onde moraram meus pais, de vez em quando entrava em sua morada. Ela era mantida viva graças aos esforços de seus filhos amados. Neste fim de semana ela se foi. O bom Deus a levou para perto dele. Onde agora ela vela por nós.

Pensamentos múltiplos passeavam por minha cabeça fervilhante de ideias nesta noite quente de domingo. Daí a noite insone que me acolheu em meu leito gostoso.

Fui remetido à roça de minhas tias avós. Era criança. Prestes a encarar a vida com olhos de rapazola.

Contava nos dedos a chegada das férias de fim de ano. Como dezembro era um mês aprazível. Principalmente depois de sua metade.

A fazendola da Cachoeira, município de Perdões, era pra lá que ia, para passar semanas, mais delas, fazendo traquinagens, coisa de criança que ainda não traz dentro dela as responsabilidades tardias.

Alguns primos de Perdões eram meus companheiros de folguedos. Eram da minha idade. Alguns mais, outros menos.

Ainda me lembro dos pés de jabuticaba gigantes que no fundo do quintal imenso foram plantados.  Por eles trepava. Quantas quedas aconteciam, sem nenhuma gravidade.

Um rego d’água saracoteava entre aquelas árvores de tronco liso. Um carneiro fazia tlec tlec pontualmente. Com uma frequência inquestionável. Era ele quem levava água do córrego cristalino a caixa que se equilibrava por cima do telhado daquela casinha tosca.

As tias Marina e Leonor se revezavam no fogão a lenha. O leite vinha do curral do tio Júlio. Eram elas que faziam comidas deliciosas. E nos cobravam um banho rápido na bacia, na boca da noite, já que não havia chuveiro naquela rocinha encantada.

Fazíamos fila para entrar naquela baciona enorme. Eu era sempre o primeiro. Por ser o mais velho tinha certas regalias.

A mesa onde era servido o almoço era de madeira lisa. Tão grande quanto a nossa fome.

Não tínhamos a obrigação de lavar os pratos. Mesmo assim cuidávamos da horta de couve. De onde trazíamos verduras e ovos caipiras sob o protesto das galinhas cacarejantes.

A noite nos recebia de novo aos pés do velho fogão a lenha. Onde chamas crepitavam lentas. Delas restando brasas vermelhas que acalentavam o ambiente nos tempos de frio. Logo depois éramos levados a cama de pés altos. Dois ou mais de nós compartilhávamos aquele colchão de palha dura. Éramos cobertos pelas queridas tias Mariana e Leonor.

Foi ali que senti no peito a primeira vocação para a vida na roça. Depois convertida em realidade tempos tardios.

Até os quinze anos ali passei as melhores férias da minha vida. Depois a fazenda da Cachoeira mudou de dono. As tias queridas partiram. Foram ao mesmo lugar onde meus pais moram. Deixando em nós, seus sobrinhos netos, um lugar vazio jamais preenchido.

Hoje passei mais da metade da noite entregue a devaneios pueris. Dada a insônia, que de vez em quando se repete, aos pensamentos que vagabundeiam sempre, meus olhos se mantiveram abertos.

Antes das cinco já estava a caminho do consultório.  Andando por ruas semivazias.

Pena que a criança que morava dentro de mim se foi. Mas no fundo deste ancião que escreve restam boas lembranças. Dos tempos quando era menino. E elas são tão belas como as cores do arco-íris.  Que de vez em quando aparecem na linha do horizonte. A indicar o fim das chuvas. O recomeço de outra. Em hora boa.

O que seria da gente não fossem belas lembranças? É graças a isso que sobrevivemos.

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