A realidade não é bem isso

Como pintar a realidade?

Seria com as mesmas cores vivas como o vermelho e o amarelo?

Mas pra mim ela se mostra cinzenta. Da mesma cor dessa manhã acinzentada.

Pras crianças a cor da realidade deve ser da mesma claridade de um dia ensolarado. Céu azul. Sol a se mostrar todo garboso com sua cor de um amarelo vivo. Lembrando-nos um canarinho da terra já amarelinho depois de certa idade.

Já pra quem perdeu a mocidade a mesma realidade se mostra em cores menos abusadas. Um tom amarronzado. De um verdume acinzentado. Ou quiçá de uma tonalidade que nos lembre uma vaca parida. Que perdeu a cria num dia chuviscoso. Que tentou amoitar o concepto num matinho obscuro. Na intenção de deixar a salvo seu primeiro bezerrinho dos predadores alados.

Quem pensa que viver na roça a pintura desse quadro deveria ter uma porteira à sombra de uma velha amoreira. Passarinhos a cuidar dos seus filhotes trazendo no bico alimentos recém retirados da terra. Vacas pastejando bucólicas a relva verdinha da pastaria.  Cavalos correndo soltos livres pelas pradarias. Uma linda estrada ensombrada a acolher os estóicos homens do campo depois de um dia árduo de trabalho exaustos e famintos. Um fogão a lenha ainda crepitando chamas naquelas noites estreladas e com a lua a servir de cenário aos pirilampos noctívagos. Por vezes nem sempre a realidade corrobora com tudo isso.

É só chover demasiado e a estrada se torna intransitável. O morro topetudo impede a chegada do caminhão leiteiro que se atrasou mais de duas horas. E naquele dia ingrato faltou luz. A ordenha da vacada teve de ser feita de próprio punho. A mãos desnudas e caludas como casco de tartaruga quase beirando os duzentos anos.

As cores não parecem tão vivas para quem mora na roça. Lá se levanta ao cantar do galo. Ao grasnar das maritacas que se aninharam na laje rota de um telhado por onde as goteiras cantarolam e adentram sem pedir licença. Quem vive na roca não tem tempo de ficar olhando as estrelas, pois a fadiga logo os intima a dormir. O sono vem cedinho já que a hora de acordar é sempre a mesma. A porcada faminta grunhe lembrando ao dono que aquela hora madrugada a mistura de milho e soro já deveria estar nos cochos que se esvaziam em menos de um minuto; se tanto.

Quais deveriam ser as cores do campo? Não um quadro de Monet. Que retratava a paisagem em cores esmaecidas e pouco nítidas. E sim de um colorido sofrido e árido. Que melhor nos lembra o verdume da caatinga percorrida por Guimarães Rosa no seu Grande Sertão – Veredas.

A realidade vivida na roça não é bem isso.  Lá por vezes a solidão incomoda. A falta de conforto impera. A vida dura não lhes permite descanso. A renda do leite quase sempre perde pras despesas tantas.

Na roça o tempo muge como uma vaca faminta. Que na estiagem mostra as costelas. E no alto urubus pressentem a morte com seus olhos de lince.

Só quem vive lá hem sabe o seu lugar. E não o troca por lugar nenhum. Se por acaso levarem o homem nascido e criado na roça a viver na cidade ele acaba morrendo antes da hora. “Catira ruim”. Diz ele.

A velha porteira, caindo aos pedaços, pode ser retratada no cenário rurícola. As vacas pastando um capim verdinho da mesma maneira podem. Os cavalos relinchando felizes também deveriam. Da mesma forma canarinhos da terra ciscando o esterco do curral ali encantam ao cair das tardes. [

Mas, passar um final de semana na roça. Três dias inteiros. Uma semana talvez. Pra quem não tem o umbigo enterrado lá. Experimentam essa dura realidade. Quem sabe as cores que tintam esse quadro não sejam tão vistosas. E sim um cinza taciturno e sombrio.

Os passarinhos não cantam tanto já que a chuva não lhes permite deixar o ninho.   As maritacas não descobriram as jabuticabas madurinhas, pois esse ano não choveu o suficiente e elas não maduraram no final do ano.

O cenário do campo pode não ser tão colorido como as cores do arco iris. Pois choveu além da conta e a labuta diária não deu tempo de perceber.

Quem pensa que morar na roça é viver no paraíso dê um tempo ao tempo. Antes de pensar assim.

 

 

 

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