A manta do Zé Catira

Ontem, hoje, não sei quantos dias atrás, ao descer a rua por onde minhas pegadas somem sem se deixarem marcar, andei indagando, como quem nada quer, a pessoas que comigo se entrecruzavam, o significado das palavras – manta, catira.

A maioria esmagadora me afirmou, num meneio de cabeça, num instante em que seus pensamentos vagavam a esmo, que desconheciam tais palavras marotas, de sentidos lógicos para quem vive com intensidade os ares do campo.

Ontem mesmo, numa loja de pouco movimento, aberta na tarde de domingo, quando ali entrei em companhia da mulher da minha vida, vi, com estes dois olhos que a terra vai resguardar, um anúncio, numa gôndola que não navega em Veneza, o “vende-se manta” , com desconto. Era outro tipo de manta cobertor fino, artigo sobejamente usado pelos esquimós, no entanto agora, primavera quente, verão por sucedê-la, os tais agasalhos próprios ao frio irão encalhar a exemplo de navios em mar raso. Não precisa afirmar que minha pesquisa sobre manta e catira foi mais um exemplo de tentar vender geladeira aos esquimós.

Foi quando me lembrei da minha rocinha prejuizenta, agora arrendada a quem entende de vacas e suas famílias.

Nos primeiros tempos como tomei manta, tive sonoros prejuízos na catira com meus vizinhos de pasto.

Quando comprava uma vaca, presumivelmente, boa de leite, com o bezerro a tira tetas, pensando ter feito um bom escambo, uma breganha conveniente, depois de ver a danada da Gerusa, esse era o nome de batismo da ruminante, dar mais de trinta litros de leite branquinho, mesmo sendo ela preta, uma vez a tal Gerusa se transferir, de mala e cuia, à minha propriedade, a safada sonegava o produto e só enchia uma latinha de cinco litros. E a presumida bezerrinha, negociada como fêmea, era um reles gabiru, que não durou mais de dois dias, e passou a ser de domínio da fome dos urubus.

Assim sucederam-se outras mantas, depois de catiras mal conduzidas.

Com o tempo, os anos se desdobrando em meses, desenganos cedendo lugar a levianos saltibancos trapalhões, o depois não veio logo. Aprendi a passar manta nos mesmos fulanos que me deitaram o prejuízo às costas não tão largas como agora. Passei a trocar chuchu por quiabo que não babava. Jiló maduro por beterraba carunchada. Descobri que as situações é que põem as vírgulas não os pontos.

Zé Catira, nome de batismo- João Fiel Infidelidade Pura, era a expressão descarrada de sujeito passador de manta. Veiacão de cuja veiacaria ultrapassava a porteira quebrada, caboclo mais ladino que lampião de gás enferrujado, ultrajado pelos vagalumes que se sentiam melhores que o tal. E iluminavam mais, mesmo iluminando menos.

Um dia nos encontramos. Foi na curva oblonga da minha roça, uma encruzilhada onde, uma vez, descobri um despacho recém inaugurado. Era uma galinha preta abatida de fresco. Um prato de sangue ainda vermelho sem coagular. Uma garrafa de canjibrina de marca duvidosa. Além de uma cruz com jeito de cruz credo. Que conferia àquele cenário um ar de sexta-feira treze.

Eu e o Zé Catira nunca havíamos feito uma catirinha sequer. Ou breganha, ou escambo, ou troca, ou coisa de menos valia.

Depois de tentar negociar com ele uma dúzia de patos, que na verdade não eram patos, eram galinhas dangola desenganadas pelo infortúnio, uma dezena de vacas baldeiras, que eram em verdade solteiras que nunca prenhavam, tornaram-se estéreis por perderem o cio mais de duas vezes, por falta de boi bom de monta, eu sou vasectomizado, não servia, de tentar passar para o outro lado da cerca, recém remendada, com arame enferrujado que sobrou da cerca do outro vizinho maroto, como eu me tornei, uma dúzia de galinhas caipiras, em verdade eram pintadas de caipiras, não legítimas, além de um burro velho, com cara pintada de novo, e, para não cansar o leitor, um trator com motor recauchutado, agora estropiado, em troca de um novinho em folha, de vender ao Zé Catira Veiaco um ganso com a sua cagança de piriri da brota, enfim sós, na solidão daquela encruzilhada do despacho vencido, saí da linha dos olhos do Zé Catira, ex veiaco, com uma sensação de dever mal cumprido.

Que manta passei no Zé Catira Torta! Foi tanta a manta que até hoje, quando o vejo, cabisbaixo, andando pelas estradas, com a calça furada nos fundilhos, sinto pena do coitado.

O mesmo coitado que fui, naqueles anos velhos, quando era eu que tomava manta, e não emendava vendo a cara da Geralda.

 

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