Naquela manhã de setembro dona Aurora acordou agoniada.
O céu cinzento parecia que fumava. Uma névoa espessa, resultado de poluição do ar, cobria tudo ao derredor. A seca preponderava. Há quase um ano inteiro não chovia. O ar ressequido empestava nossas narinas. Um surto de influenza deixava a todos com medo do tal vírus. De nada adiantava a vacina. O tal vírus mutante parecia estar resistente a ela.
Aquela senhora, mulher de respeito em toda comunidade, enviuvou-se há exatos três anos. Seu marido faleceu de causa ignorada. Era um beberrão contumaz e consumido pela bebida.
Ele chegava a casa todas as noites exalando da boca um hálito etílico. Isso quando chegava e não dormia pelas calçadas. Era comum vê-lo trocando as pernas com sua risada característica.
Em absoluto ele não fazia falta. Dona Aurora já premeditava aquele desfecho fatídico. A sua morte até que não foi tão sentida. Aquele homenzarrão, por sua vida desregrada, aos menos de trintanos já havia nele se instalado algumas doenças próprias de quem não cuida de si mesmo. Obeso quase mórbido. Diabético com a glicose nas alturas. Cifras pressóricas de fazer o aparelho de medir pressão murchar na primeira tentativa de medida.
O seu passamento se deu numa noite escura. Ao seu funeral compareceram alguns poucos amigos. Dona Aurora, vestida num traje negro, impressionava pela formosura. E como ela, já ultrapassados os seus muitos anos, conservava, na pele alva, traços de quando jovem linda como uma rosa em botão.
Naquela manhã de setembro ela acordou com um estranho pressentimento. Havia perdido o marido numa noite igualzinha aquela. Num clima seco propicio a queimadas. Num dia fumarento onde quase não se via a azulice do céu.
Desde que seu esposo faleceu ela vivia com seu filho único.
Um rapagão de quase dois metros de altura. De uma beleza que rivalizava com a de um garanhão a procura desatinada de sua fêmea no cio.
Esse moço era o único motivo de sua alegria. Tinha por ele uma adoração sem igual.
Por ele respirava, sorria do próprio infortúnio. Aquele moço bom era seu maior e único motivo de orgulho.
O nome dele era Pedro. Não tinha defeitos. Pra ela e pra todos que o conheciam.
Era não só dedicado a mãe como a todos os vizinhos que dele precisavam. Pedro era solicito em todas as ocasiões. Lembro-me, uma vez, quando caminhava pela rua, era um final de tarde, quando um cãozinho vadio dele se aproximou. Esse cão se mostrava faminto. Estávamos bem próximos de uma pet shop. Pedro entrou porta adentro. Comprou um saco de ração. E levou aquele cão a sua casa. Desde então aquele sofrido cãozinho foi adotado. E hoje vive feliz ao seu lado. E nunca mais passou fome.
Dona Aurora só tinha motivos para ser feliz ao lado do filho Pedro.
Até aquele dia funesto.
Pedro recentemente havia sido aprovado na universidade. Preparava-se para começar os estudos na área de direito. Era esse seu sonho desde meninozinho.
Bom aluno desde o primeiro degrau da escola. Assim permaneceu por anos seguidos. Tirou nota máxima no vestibular. Egresso de escola pública nunca tirou notas inferiores a sete.
Pedro só causava alegria a mãe dona Aurora. Era um filho exemplar como deveriam ser todos nascidos do ventre materno.
No primeiro dia de aula Pedro acordou radiante. Era uma manhã cinzenta, céu esfumaçado e seco. Nada de a chuva cair.
Dona Aurora despediu-se dele com um carinhoso beijo na face.
“Até breve meu filho. Que Deus o acompanhe.”
Mas eis que o dia vira noite. E Pedro não chega.
Dona Aurora se impacienta. Onde estaria meu querido filho?
A resposta veio apenas no dia seguinte. Depois de uma procura que não deu em nada.
O querido filho Pedro. De volta da faculdade. Num cruzamento perigoso. Num momento de desatenção foi colhido por um ônibus apressado. O atropelamento foi fatal. Da felicidade do filho amado não restou nem o sorriso ingênuo, pois Pedro teve o rosto desfigurado.
Dona Aurora recebeu a noticia em prantos. Nada mais restava do filho amado senão lembranças.
Creio ter sido no mês passado o acontecido. Dona Aurora não resistiu a mais essa perda. Foi encontrada morta no próprio leito. Com o seguinte bilhete na cabeceira de sua cama.
“No dia de hoje morri duas vezes. Na primeira tive de enterrar meu querido Pedro. Agora que enterrem a mim na mesma sepultura dele”.