Se, pronome reflexivo e apassivador. Que tanto pode denotar indefinição por onde seguir ou ser apenas uma partícula de realce. Um respiro entre palavras ou frases. Como exemplo exemplifico: “se eu soubesse pra onde ir por certo não ficaria em dúvida. Iria por esse caminho se me permitirem.”
Deveria e se são aparentados. Como eles se parecem como filhos geminares.
Se eu devesse ir pra onde iria? Não sei se pra onde meu coração dita. Ou pra onde a razão mostra.
Se eu devesse procurar meu caminho por certo seria o mesmo percorrido. Afinal já são setenta e quatro anos de estrada. A passos lentos ou de maior velocidade sigo sempre adiante. Mas sempre retrocedo ao passado. Já que, por mais que tente não consigo me desvencilhar daqueles anos bons da minha infância. Ainda morando naquela casa que nessa manhã escura e fria mal se deixa ver já que ela não existe mais a não ser nas minhas lembranças que ainda moram dentro do meu coração.
Se deveria me esquecer de tantas coisas boas que me aconteceram por que não me esqueço delas? Afinal não sou dono das minhas recordações. Elas simplesmente são lembradas. E se olvidadas procuro onde elas se escondem. Talvez seja num baú de guardados. Ou num sótão escuro morada de morcegos e saudades de mim criança. Setenta e quatro anos se foram. Deveria me esquecer do passado? Viver apenas e tão somente o presente? Sabendo que o futuro é não mais que consequência do que somos e ainda seremos?
Na noite de ontem revirei meu baú de guardados. Não sei se por que razão assim o fiz. Não era tão tarde. Deveria tê-lo feito há mais tempo para organizar a bagunça do quarto onde durmo pouco.
Numa gaveta onde nunca vasculhei dantes encontrei alguns objetos ligados ao meu passado. Tenho no dedo mínimo da mão esquerda o anel de grau presente de formatura do meu pai. Ele não era médico como seu filho mais velho. Era gerente de uma casa bancária que leva o nome de nosso pais.
Mais no fundo daquela gaveta descobri meu convite de formatura. Deveria tê-lo trazido antes ao meu consultório. Agora esse documento, em forma de um pergaminho antigo, repousa por sobre a minha mesa de trabalho. Já perfazem cinquenta anos essa efeméride. Ele começa assim: “Eu, Paulo Expedito Rodarte de Abreu e a congregação da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, fazemos saber a quantos esse virem: que no mês de dezembro desse ano comemorar-se-hão as solenidades de formatura dos alunnos dessa sobredita faculdade. Pelo que, tomando eu na minha consideração numa matéria tão importante sou servido determinar, e estabelecer ao dito respeito o seguinte: aos oito dias do mês de dezembro do anno do Senhor de mil novecentos e setenta e quatro, na Cidade de Bello Horizonte, no ginnásio do Minas Tennis Club, às vinte horas, colação grau os alunnos seguintes: segue uma lista de cento e sessenta jovens esculápios onde consta o meu nome supracitado”.
Deveria me vangloriar dessa data tão importante? Creio que nós todos, supracitados, deveríamos sim. Cerca de trinta colegas não fazem mais parte dessa lista. Já partiram ao céu onde devem exercer sua nobre arte de curar.
Deveria me esquecer de fatos pretéritos? E só pensar no que vem pela frente? Essa crença não a tenho em bom conceito. O passado criou raízes dentro de mim. Graças a essas raízes me mantenho firme no solo.
Deveria me aposentar por completo? Meu saudoso pai me dizia: “não se aposente nunca meu filho. O ócio é o começo do fim.”
Sei que não devo fazer tantas coisas. Deveria me aquietar no meu canto. Mas se não sei cantar que tal retratar o cotidiano? Ele tem cores lindas mesmo em dias cinzentos.
Deveria dormir mais horas? Mas se a cama me repele? Tenho medo da noite. E o dever me chama. Como ficar na cama se o dia se mostra do lado de fora da minha janela e não pretendo deixá-la fechada.
Sei que deveria me ater mantendo minha pena calada. Mas não tenho como aquietar a inspiração que murmura dentro de mim. Ela tem de ser atirada ao lume do dia. Escrever em absoluto não me cansa. Aplaca minha ansiedade. Acorda meus sentidos antes adormecidos.
Talvez devesse dormir um cadinho mais. Mas como se o sono não vem? Deveria sim fazer tudo aquilo me faz feliz. Assim deveria viver. Como vivo. Entre deveres e afazeres. Fazendo de conta que ainda sou menino. De calças curtas e idéias longas.
Como naqueles saudosos anos quando me tornei médico. Afinal fazem cinquenta anos que aquela efeméride aconteceu.
Deveria me jubilar por completo? Fechar as portas do meu consultório? Encerrar esse capitulo tão lindo da medicina? Dizer aos meu netos que já fui?
Sei que não deveria. Embora desconheça o que me reserva o amanhã.