O “Pouco Se Me Dá”

Naquela hora do rush a cidade de punha em polvorosa.

Não havia onde parar os carros. Naquele trânsito congestionado se ouvia um buzinaço.

Motoristas descabelados mal podiam ter um segundo de desatenção, senão a colisão seria certa. Guardas de trânsito tentavam, inutilmente, por ordem naquele furdunço. Semáforos irrequietos desfilavam entre a cor vermelha, amarela, e enfim o verde mata.

Mas nada dava conta de apaziguar aquela situação calamitosa.

Enquanto isso Zé da Paz abria seus olhinhos sonolentos naquela manhã de um quentume de fazer diabo se refrescar na fonte luminosa da praça central. E como a chuva fazia falta naquele inverno com cara de verão. A temperatura oscilava entre trinta e mais degraus. O sol rachava mais que o machado quando entra nas achas secas de lenha. O céu, de uma azulice de fazer cegar os olhos, não dava deixa para nenhuminha nuvem cinzenta entrar. A chuva não dava o ar da sua graça. Graciosa que sempre foi naqueles dias quentes.

Zé da Paz, como era conhecido por aquelas bandas, não tinha o costume de se apoquentar. Pra ele tanto faz como tanto se desfez. Não perdia os cabelos que não tinha. Era de uma paz que dava inveja naqueles que adoram guerrear.

Naquela hora, quase a manhã se metamorfoseando em tarde, o relógio da igreja matriz badalando meio dia, Zé se preparava para voltar ao trabalho.

Ele era porteiro de um edifício, cujo nome era fácil de entender, pois se chamava edifício das clínicas.  Onde profissionais de saúde se amontoavam.  Eram quatro salas por andar totalizando dez, um sobre o outro.

Zé da Paz chegava ao trabalho sempre montado numa carroça chamada pernas. E como ele a usava bem. A batata que se mostrava na sua panturrilha forte era dura como aquelas que se tiram da terra e não dão cozimento. Zé era mais vigoroso que muitos jovens parrudos que malham em academia deixando a mostra seus músculos forjados através de bombas e hormônios que com o tempo acabam fazendo mal.

Ele não se apoquentava com nadica de nada mesmo. Já tinha mais idade para se aposentar.

Já tinha feito de tudo um pouco. Foi retireiro madrugão. Bombeiro encanador não enganador. Carpidor de sarandi ou foiceiro de mato alto. Pedreiro de meia colher. Mas para comer era de colher inteira. Não era gordo nem obeso. Sua barriga não escondia o andar de baixo.

Zé da Paz exalava paz por todos os poros. Era a tranquilidade em pessoa boa.

Quando a situação apertava ele nem se abanava. Fizesse calor ele procurava sombra. Na chuva ele deixava escorrer enxurrada. Na solidão ele não pedia companhia. Na friagem das madrugadas ele olhava pra lua e na luz dela se aquecia.

Zé da Paz sempre dizia nas situações mais aflitivas: “pouco se me dá. Tenho dez dedos para limpar o salão. Luz do lampião quando falta eletricidade. Sossego quando a azáfama incomoda. Tapo meus ouvidos quando do lado oiço desaforo. Aliás, não levo desaforo pra casa. Deixo ele na rua mesmo. Não me preocupo se faz calor ou frio. Se faz calor uso o ventilador. Se faz frio deixo o sol me esquentar. Não esquento a pioenta com nada nesse mundo por vezes imundo. Se está sujo deixo quem sujou limpar. Só limpo onde assento. Quase não tenho tempo de conferir minhas nádegas a um banco da praça. Por falar em banco, esse outro, onde se guarda dinheiro, pra mim não tem serventia. Meus caraminguados escondo dentro do meu colchão. Ali nem os ratos encontram, pois eles lá não têm lugar. Moro não de favor. Tenho meu próprio ranchinho. Dois cômodos são suficientes pra eu morar. Uma cozinha onde faço minha marmita. Um quartinho onde durmo. E só. Pouco se me dá se água corre pra cima. Deixa ela ir pra onde quiser. Não me apoquenta se o trânsito empaca. Não uso carro nem lotação. Pra mim as pernas nunca serão multadas por irem na contramão. Ah! Se me olharem de esgueio não faço cara feia. Evito mal olhado. Me benzo na encruzilhada. Mas não tomo pinga engarrafada, só purinha da silva. Nem como galinha preta. Desconjuro quando me juram de morte. Ao revés, acho a vida linda. Tem gente que atrapalha ela”.

Hoje mesmo trombei com o Zé da Paz. Seu outro nome chamam de Sô Zito. O porteiro do edifício onde tenho a minha oficina de trabalho. Ele também é reconhecido por “Pouco Se Me Dá”. Tenho dito – bom dia a vocês.

 

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