Não se pode fugir dessa incontestável verdade. Todos iremos envelhecer.
O tempo não perdoa. Avoa, como dizia minha avozinha.
Ela se foi aos quase noventa. Meu avô não resistiu a sua ausência e partiu no dia seguinte a ela. Eram velhinhos simpáticos. Ele de nome Rodartino e elazinha se chamava Umbelina mais conhecida por Belica.
Daqui do alto ainda posso ver o lugar onde eles moravam. Uma casa desfeita para ceder lugar a um prédio que leva o nome do meu avô Rodartino Rodarte. São lembranças fugidias que não se desfazem de dentro de mim. Defronte a casa dos meus avós existia um jardim suspenso onde minha querida avozinha cuidava do seu jardim onde ela plantava rosas amarelas. Dizem, no que acredito, já que era um garotinho traquinas, que um dia me pilharam em fragrante delito comendo tatuzinhos pretinhos. Minha querida mãezinha não teve outra coisa a fazer senão me repreender e lavar minha boquinha suja na água fria da pia.
O tempo passa. A gente cresce. A idade chega. E a gente não fica imune a passagem dos anos. Penso que não tão cedo irão inventar uma vacina que nos imunize contra a passagem do tempo.
A vida nos diz pra termos cuidado com o envelhecimento. Mas quem diz ser possível continuar como estamos nos tempos de agora? Ainda cônscios das responsabilidades. Andando eretos sem ser preciso nos abengalarmos. Dispensando cuidadores sem sujar a roupa de baixo com nossos excrementos que saem sem querer querendo. Ou ainda mal escutando aquilo que a prudência nos intima.
A velhice pra muitos é um fardo pesado que carregamos nos nossos costados. Que nos faz andar como dantes. Engatinhando como criancinhas antes de aprenderem a caminhar.
Pra mim não vale a pena vivermos quando a saúde nos abandonar. Viver sem poder dizer pelo menos um bom dia aos passantes. Numa manhã gelada como a de hoje. Numa caminhada que seja trôpega pelas ruas da cidade. Caminhando solitários sem precisarmos de acompanhantes. Sem sequer podermos pensar no que fazer no dia seguinte pois se nem sabemos mais quem somos ou pra onde iremos. Divagando devagar. Dialogando sem quem nos oiça. Nessa caminhada solitária. Que seja numa encruzilhada perdida numa estrada sem parada. Que nos alijam de nós mesmos. Deixem-nos partir sem retorno pra algum lugar desconhecido pra onde iremos no mais tardar amanhã ou na incertitude de um depois.
Na minha profissão eleita há tantos anos. Afinal se passaram mais de cinquenta de formado. Ainda ativo penso ser. Empunhando o bisturi ainda não aposentado por completo. Sacando próstatas crescidas e sem mais serventias quando o jovem deixa de ser. Tentando atenuar sofrimento esquecendo-me do próprio. Entre parar e seguir adiante. Nessa encruzilhada me encontro.
Ainda exerço minha especialidade. Se bem que em menor escala. Agora faço apenas o que me apraz. Aqui chego bem cedo ainda. Saio do meu consultório antes das dez da manhã. Retorno depois do almoço. Deixo minha amável atendente ficar até que a tarde mostre sinais que deseja que a noite aconteça. Escrevo o que minha inspiração transpire coisas que se amontoam dentro de mim. Lá pelas quinze horas parto pra uma academia. Não na de letras que estou viciado. E sim naquela que o corpo pede para continuar saudável.
Foi no dia de ontem o acontecido.
Era uma consulta agendada para dias atrás. Mas o idoso não compareceu.
Ele veio acompanhado de sua velhinha. Ambos juntinhos celebravam quase duzentos anos. Ela noventa e tantos. Ele um ano a mais.
Do lado de fora da minha sala se ouvia uma prosa em altos decibéis. A minha diligente secretária tinha de falar bem alto. Do outro lado outras vozes mais altas se ouviam.
Ao final de alguns bem marcados minutos os dois velhinhos adentraram nessa sala. Assentaram-se com muito custo nas duas cadeiras defronte a minha mesa.
A principio a eles perguntei. Em voz bem alta e entendível: “o que os trouxe aqui”? Trocando em miúdos, qual seria o motivo da consulta.
Foi a senhora, mais lúcida e menos surda que respondeu: “foi um busão que nos trouxe aqui”.
O meu interrogatório persistiu por uma hora inteira até chegar à conclusão que a razão da consulta seria por um problema na urina que não saia a contento. E ele não estava contente na hora de urinar. Mijava com enorme dificuldade. E não via a hora de melhorar.
Uma vez na sala de exame constatei uma coisa dura na sua próstata. Seria um nódulo duvidoso. De natureza maligna acreditava.
Foi pedido um exame de sangue chamado PSA.
Semanas depois eis que retorna o casal. De posse dos exames pedidos. Pasmem!
Vieram mais de vinte exames. Menos o tal solicitado.
De novo tentei esclarecer aqueles não esclarecidos que deveriam trazer esse exame. Cujo nome reescrevi- PSA.
Mais um mês se foi na folhinha. E pela terceira vez ambos retornaram trazendo o resultado do exame pedido. Mais uma vez me surpreendi na falta do mesmo pedido pela quinta vez.
“Cadê o PSA”?
A velhinha, a procura, de dentro de um embornal surrado. Disse que havia esquecido. Mais uma vezinha só. Desse exame de sangue que seu veinho já havia feito.
Tive de contar até mais de mil. Antes que chegue a próxima vez ela me disse. Num sorrisão entre dentes que faltavam: “é duro mexer com veio né”!
Foi quando me olhei no espelho e vi que ela falava comigo mesmo.