Prova irrefutável

Ele sempre foi um trabalhador voraz.

Jovenzinho foi empregado num ofício do qual ainda se lembra com saudades.

Entregava jornais por toda cidade. Sempre caminhando, olhando pros lados, admirado com as pessoas e tudo aquilo que percebia no entorno.

Natanael sempre teve uma queda pelos versos. Lia o grande pequenino Quintana com olhos cheios de admiração.

“E agora que desfecho, já não penso mais em ti, mas será que nunca deixo, de lembrar que te esqueci”?

“Quem faz um poema abre uma janela. Respira tu que está numa cela. Abafada. Esse ar que entra por ela. Por isso os poemas têm ritmo. Para que possamos respirar. Quem faz um poema salva um afogado”.

“Esse tic-tac dos relógios é a máquina de costura do tempo. A fabricar mortalhas”.

E assim passeava a sua vidinha singela. Entre trancos e desbarrancos, pensando um dia vencer as dificuldades.

Natanaelzinho galgou a mocidade. Atingiu a vida adulta e daí a senioridade. Conseguiu ser advogado já bem tarde. Com que prazer levou aquele diploma pra casa. Dependurou-o a parede, juntinho ao retrato dos pais.

Ele quase não viu os pais em vida. Venceu por ele mesmo. Saiu da faculdade com o dobro da idade do mais jovem.

Montou banca num cidade de porte mediano. E como foi difícil conseguir clientes. Sua agenda sempre cheia de espaços vazios a ele desanimava. Mas com o tempo mancando, com os anos indo e voltando, os primeiros clientes satisfeitos com sua dedicação, logo conseguiu se ver livre do ócio.

Sua missão, quando jovem, ainda foi vencida com altos e baixos. Ainda se lembra de quantos clientes atendeu sem receber o pago. Não fez porta de cadeia, dada a honestidade que sempre lhe marcou a vida.

Preferia os inventários. As causas cíveis lhes eram do agrado. Por isso chegou a maior idade com poucos recursos na conta bancária sempre devendo alguma coisa.

Natanael nunca pode pagar um plano de saúde. Vivias as expensas do SUS. Daí a demora em conseguir atendimento.

Numa manhã de inverno acabou internado com falta de ar. Passou numa enfermaria lotada grande parte de sua velhice.

Mas, por predestinação do destino, ainda não foi desta vez o seu passamento.

Deixou aquela casa misericordiosa um tanto melhor. Mas ainda sofrendo com a falta de ar.

A tão sonhada aposentadoria estava sendo quase impossível de chegar. O velho causídico das causas perdidas contava, naquele ano de dois mil e dezoito, com bem contados setenta e oito anos de idade. A saúde o havia deixado órfão. Já que os pais há tempos partiram deixando uma lacuna imensa por detrás.

Era comum ver o velho advogado à porta do INSS em horas tempranas. Fazia frio. Era inverno em seu começo.

Afinal ele conseguiu a tão sonhada aposentadoria. O velho sonho se materializava.

Dois anos se passaram. Natanael percebia uma migalha. Mas era o suficiente para continuar a viver sobriamente.

Tudo caminhava da melhor forma possível. O homem das leis continuava a fazer versos. Inspirado pelo poetinha gaúcho.

Foi quando recebeu uma carta que lhe causou espanto. Precisava provar que estava vivo. Não morto como muitos que recebem o benefício graças a maracutaias tão comuns no país onde vivemos.

Com aquele documento na mão, trêmula, trôpego e arfante, foi caminhando, lentamente, a agência do INSS.

Ali esperou pacientemente a tal abrir as portas. Era antes das cinco da manhã. Uma névoa densa, fria, cobria tudo ao derredor.

Nenhuma vivalma se via no entorno. Apenas o velho senhor ali estava. Tentando provar-se ainda vivo.

Duas horas se passavam. O velho aposentado sentiu-se mal. Dobrou-se em seus joelhos. Uma pontada, como se um punhal lhe fosse ensartado ao peito, foi o começo do fim.

Quando a agência abriu os portões já era tarde. O velho advogado, com a lisura que foi dotado, tentando provar que estava vivo, não resistiu ao infarto. Foi encontrado morto. Lívido, já com a rigidez cadavérica.

Como o velho Natanael existem milhares de casos. Que tentam provar o óbvio.  A burocracia do país exige provas irrefutáveis de que o coração ainda bate. Mas por vezes ele para. Na porta da tal agência, que ainda hoje se abriu a outros pobres coitados que sonham com a aposentadoria. Mas ela pode chegar tarde demais.

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