Brava gente brasileira

Zé Antônio acordou cedo naquela manhã chuvosa. Chovera a pingos gordos a noite passada. Pelo telhado tosco de sua casinha da roça goteirava por todo lado.

O estoico homem do campo dormiu como uma coruja a vigiar o entorno. Sempre a espera da caça que desavisadamente houvesse perdido o sono. E poderia, por um descuido, ser presa fácil do seu bico forte, e ali mesmo, por cima do cupim morto, ser destrinchada em fiapinhos, sendo um a um levados ao ninho para dar de comer aos filhotes.

Zé Antônio teve um estranho pressentimento naquela manhã verãozenta. Algo de trágico poderia acontecer a um dos seus filhotes. Ele tinha três filhos. Duas meninas e um menininho. Arteiro como são todas as criancinhas ladinas, de inteligente superior.

A mãe dos pimpolhos, zelosa senhora, não se descuidava um minuto sequer de suas crias. Mas ela tinha seus afazeres. Era a responsável pela mamadeira dos bezerros, de alimentar a porcada sempre faminta, e cuidar da horta de couve de onde tirava verduras fresquinhas, que nos tempos chuvosos careciam maiores zelos.

Naquela manhã quando á agua da chuva caía por todos os cantos, era mais ou menos oito da manhã, quando o marido se preparava para apartar os bezerros de suas mães, eis que uma fatalidade acontece. O chão molhado oferecia riscos aos passos inseguros. E o menininho com seus três aninhos, com seu andarzinho titubeante, escorregou no barro vermelho, e acabou afundando nas águas turvas de um pequeno açude. Era um laguinho raso. Mas profundo o bastante para dar cabo da vidinha ainda no começo do pequeno Artuzinho.

Ainda me lembro, como se fosse hoje, de quando me chamaram na cidade comunicando o trágico acidente.

Fui em menos de meia hora na minha caminhonetinha prateada à roça do amigo Zé. Em lá chegando, ao constatar a cena triste, num impulso de gente da cidade, acostumada a atropelos de linguagem, logo admoestei duramente o pai do menino: “Zé, como deixaram isso acontecer? Que descuido deplorável. Artuzinho deveria ser mais bem cuidado. Ainda mais na sua idade. Sujeito a tantas fatalidades.”

Foi quando o pai desconsolado, lágrimas salinas escorreram-lhe dos olhos, me respondeu mansamente: “doutor, é certo que Artuzinho morreu. Por nós ele não morreria nunca. Mas um ser superior quis assim, quem somos nós para contrariar seus desígnios?”

Levei o pobre menino ao cemitério da cidade perto. Cuidei do seu funeral. Enfeitei o caixãozinho branco com flores do campo. Fiz uma breve oração. E voltei à roça. Onde todos estavam orando contritos pela alminha boa daquela criança feita anjo prematuramente.

Anos mais tarde, foi no sábado último, voltei à roça sem me recordar do incidente. Caso o fizesse por certo tornaria ainda mais sofrido a perda do pequeno Artur.

Fui à casa nova recém-construída no beira lago. A casa amarelazul foi arrendada a um amigo do peito. Minhas vacas mudaram de dono. Agora elas estão robustas e bem cuidadas por quem entende de ruminantes. Ali passei apenas algumas horas. Pena que os compromissos citadinos me esperavam ávidos por minha presença.

Dei uma voltinha com meu cão de nome Del Rey. Um grande amigo que passa os dias num canil olhando a beleza do lago do Funil. Pena que ele tenha de ficar prisioneiro. Caso contrário tenho medo que ele se evada daquele lugar que amo tanto.

Antes de ir embora soube de outra notícia que me causou enorme constrangimento. Não sabia de outro fatídico acidente.

Um jovem rapaz, velho conhecido, de nome Gilmar, filho mais novo de outra família que mora a um tiro de espingarda do meu lugar, na volta pra casa, numa motocicleta, veio a ser atropelado por uma carreta. Felizmente ainda vive. Faltando-lhe metade de uma perna.

O jovem trabalhador, cuja casinha recém-construída perto de onde moram seus pais, não estava naquele pequeno sítio. Nem tampouco sua esposa e seu filhinho querido.

Em poucos minutos passei por aquele pedacinho de chão. Onde espirradeiras florescem a cada estação. Onde um pequeno curral é o ganha pão do seu pai. Onde vacas baldeiras esperam a ordenha, pacienciosamente.

Na varanda, assentado comodamente, estava o pai do garoto Gilmar. Cheguei lastimando a fatalidade. Como daquela vez quando veio a falecer o pequeno Artuzinho. Do qual cuidei das exéquias finais.

“Tião, que dissabor! Pobre do Gilmar. Como foi o acidente? Quem tinha razão? Como foi que tudo aconteceu? Só vim a saber agora. Poderia ter ido visitá-lo no hospital”?

Mil indagações me assaltavam. Queira mostrar tranquilidade. O que não consegui.

Só depois de ouvir da boca do próprio homem do campo, com sua valentia soberba, dentro da sua serenidade, com o estoicismo peculiar da singeleza do singelo, é que voltei à cidade refeito da minha intranquilidade.

“Doutor, felizmente o nosso Gilmar não morreu. Poderia ter sido pior. Agora lhe falta uma perna. Mas logo ele vai se recuperar. Uma prótese vai fazê-lo capaz de ser o que foi. Ainda melhor. Pois bem sei o filho que tenho. Ele é valente, guerreiro, e não vai ser uma perna perdida que vai dar cabo de sua vida apenas no começo”.

Saí dali pensando na vida. Como o país ainda tem gente valente. Honesta, de rico valor.

O povo da roça tem me ensinado muito. A enfrentar os tropeços de cabeça erguida. Não se abater frente aos infortúnios. Levantar-se depois das quedas. E, que o machucada logo sara. Basta para isso ter fé.

Sempre que volto da roça me vem à lembrança a brava gente brasileira. Ela nem é lembrada. Muito menos valorizada. Mas, caso eles vierem a faltar, apenas vai nos restar a dieta asfáltica. E nada mais.

 

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