Retrato de um país a deriva

Zé mal pregou os olhos na noite passada. Fazia frio. Céu encoberto por nuvens cinzentas.

Do lado de fora da casinha tosca, alugada há três meses, a temperatura oscilava entre os oito e nove graus.

O primeiro aluguel venceria na manhã de hoje. Era pouco. Por volta de trezentos reais. Mas, considerando-se a situação aflitiva por que passava o desempregado, era bem mais que sua conta no banco dispunha. Aliás, ela foi encerrada por falta de fundos. E nada mais restava na conta do Zé senão um saldo negativo.

Mesmo assim o infeliz trabalhador não desanimava. Era valente, tinhoso, não enjeitava serviço fosse o que fosse.

Ele não tinha profissão definida. Não pode concluir os estudos. Parou na metade do segundo grau. Bem que sonhava ter um diploma na mão. Quem sabe de contador, de advogado, não um simples semialfabetizado como era. Aos trinta e cinco anos se encontrava nesta situação. A exemplo da imensa maioria da população.

Naquela manhã fria, era maio em seu final, sentiu um dor forte no lado esquerdo das costas. A dor foi tanta que o tirou da cama com vômitos e uma sensação esquisita de morte iminente. Felizmente não foi desta vez. Era uma cólica renal. Levantou-se aos gritos de dor. Foi, com enormes dificuldades ao ponto de ônibus. Tentar ser atendido num posto de saúde distante. Mas, assim que viu a fila de pessoas a espera da lotação foi informado que naquela manhã, por falta de combustível nos postos de gasolina, o meio de transporte não passaria tão cedo. Uma greve geral foi anunciada na noite passada. Com graves reflexos para a população do país que infelizmente José nasceu.

Aos trancos e uivos de sofrimento conseguiu, pelas próprias pernas, chegar a tal unidade de saúde pública. Mas, infelizmente, uma mal humorada funcionária a ele informou que deveria esperar mais tempo ainda. A sua cólica renal deveria aguardar a boa vontade do médico especialista. Que ficou preso no trânsito furioso daquela cidade grande.

Duas horas se passaram para o pobre Zé. Só depois de longa espera foi informado que o médico não pode chegar ao trabalho. Ele foi assaltado a mão armada. Tendo todos os seus pertences roubados.

Sofrendo com aquela dor enorme, sentindo como se a vida estivesse terminando para ele, mais uma vez Zé tentou voltar a casa pelo mesmo caminho de antes. Nenhum ônibus conseguiu sair da garagem naquela infeliz manhã. Graças à boa vontade de um farmacêutico amigo o desatinado enfermo foi medicado com uma injeção na veia que o fez ver estrelas. A dor passou. Mas voltou com mais intensidade.

Zé não sabia o que fazer. Recorrer a um hospital talvez fosse a solução. Na mesma rua havia um pronto socorro que anunciava muitos convênios. Inclusive pelo SUS. “Que sorte a minha”. Lucubrou o esperançoso Zé.

Ali chegou todo feliz. Mas sua felicidade logo passou. Uma fila enorme dizia que era preciso paciência. Mas a do Zé foi reduzida a zero. A dor era tamanha que ele não podia mais esperar a boa vontade dos demais. Num ataque de fúria Zé acabou destratando a secretária do hospital.

Foi chamado o segurança da unidade. A seguir foi feito um BO. E mais uma vez Zé foi levado, algemado, à delegacia. Um delegado mal encarado lhe deu voz de prisão. Com aquela dor imensa Zé passou a noite entre grades. Foi solto por ter bons antecedentes. Com a ficha limpa, e uma dor intensa, Zé deixou a cadeia na intenção de voltar ao hospital. Ali não foi atendido. Velho conhecido da senhorita do dia anterior.

Uma vez em casa a dor voltou. Ainda pior. Se possível era. A pedra por sorte se deslocou ureter abaixo. E saiu por ela mesma.

Zé, sentindo-se aliviado, voltou a rua para procurar emprego. Mas só encontrou portas fechadas. A crise mostrava os dentes ferozes para todos.  Mais ainda para o pobre Zé. Que pouco tinha de escolaridade.

Na semana seguinte, mais animado, acabou sendo empregado uma fabriqueta de fundo de quintal. Que foi fechada por não pagar os impostos. E teve seus dias contados. E o pobre Zé mais uma vez se viu na rua da amargura.

A greve dos caminhoneiros não mostrava o seu final. Longas filas se mostravam nas estradas. Viajores não conseguiam furar o bloqueio. E não podiam chegar aos seus destinos.

Aquele impasse entre o desgoverno e os caminhoneiros não se resolvia. E quem mais sofria era a população. Da qual o pobre Zé fazia parte sem culpa no cartório. Sua única culpa era ser pobre. Com os demais. Príncipes sem sorte.

A semana terminou. O mês de maio acabou. Com a mesma cara com que começou.

Zé sem emprego. Sem renda. Sem direito a uma saúde decente.

De volta pra casa, sob ameaça de ser despejado, foi assaltado por um bandido reincidente. Levaram-lhe o celular. O único bem que dispunha.

Naquela noite passou em claro. Ou melhor, estava escuro. Pelo fato de não pagar a conta de luz cortaram-na. E o pobre Zé acordou com um estranho pressentimento.

Teve vontade de se mudar de país. Mas para onde iria? Sem nem recursos tinha?

Mais uma vez acordou sem ter dormido. Passou uma água fria o rosto. Nem café tomou naquele dia. Foi a rua pensando que as coisas iriam mudar. Mais uma vez nada mudou. Tudo continuava como dantes. A greve persistia. O desemprego era maior ainda. A corrupção não fora vencida. Como o povo do país do Zé foi.

Seria este o país que gostaríamos de ter? Ou não?

Em verdade o que Zé compartilhava com os demais era o retrato de um país a deriva.

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