O dia quando Chico Desconsolo entupiu

O velho Chico não era mais menino naquele inverno hostil.

Fazia um frio de enregelar orelhas. O amarelo do sol, pálido de frio, anunciava o rigor daquele inverno em seu começo.

A pastaria amanheceu coberta por uma camada fina de gelo. Os animais de pelos ouriçados continuavam deitados sem coragem de ir ao curral.

De repente saiu, de entre a escuridão do lugar, uma nesguinha de claridade. Era o sol que nascia sonolento. Depois de uma noite escura do mês de maio.

Naqueles tempos Chico contava com quase sessenta anos. Mas parecia ter muito mais.

Também, devido à falta de tempo, ao trabalho que o absorvia sofregamente, o pobre não sabia o que era descanso. Era apenas e tão somente ele a cuidar daquela fazendola perdida onde ninguém sabe. E quem lá chega logo volta. Perdido entre estradas iguais.

Até os anos que o pilharam em flagrante Chico nunca fez uma visitinha sequer ao médico do arraial. Ele pensava ser imune às doenças. Não sentia nada até aqueles anos atuais.

Ainda se lembrava de uma gripinha marota que o fez ir à cama no inverno passado.  Mas em uma semana já estava prontinho pra outra. Que se repetiu tantas vezes quantas.

Diziam, nos arrabaldes, que o valente Chico era puro cerne. Que ao invés de sangue a lhe correr nas veias o que ali descia e subia nada mais era que leite branquinho, a única bebida que apreciava, desde quando viu pela última vez as tetas da mãe, da qual ficou órfão aos menos de dez anos de idade.

Aos trinta anos pensou em se casar. Mas foi abandonado, no altar, por uma formosa rapariga que, ao saber da pãodurice do quase consorciado fugiu com o padre. E nunca mais dela teve notícias. Sorte dele, talvez de ambos.

Eis que chegaram os sessenta anos. Idade considerada idosa. Mas Chico não tinha tempo para pensar na velhice.

Não teve filhos. Pelo menos que soube. Netos nunca haverá de tê-los. Azar o dele.

Numa manhã fria, quando uma névoa brancacenta cobria tudo ao derredor, mal se via o rabo da vaca, presumia-se ser antes das cinco da madrugada, o estoico senhor deixou a cama para enfrentar a rotina costumeira.

Mais de vinte vacas baldeiras esperavam ruminando a comida a ser deitada no cocho. Um cheiro de milho picado subia no ar.

Depois da primeira ordenha o desgastado Chico sentiu uma vontade imperiosa de urinar. Foi detrás da bananeira que aconteceu o incidente.

Nada saía da sua uretra. Apenas pingos doídos emergiam por aquele buraquinho fino.

Parecia, que ao invés de urina era uma brasa que crepitava da fogueira de São João. E as fagulhas incandescentes caíam sobre seu pinto. Que não mais piava. Apenas sofria.

Na noite anterior o sofredor Chico Desconsolo levantou-se não se sabe quantas vezes para urinar. O urinol ficou pelas beiradas com uma urina escura. Com mau cheiro, diga-se de passagem.

Os mesmos sintomas aconteciam tempos antes. Na hora de verter urina era um sofrimento só.  Durante o dia, as vinte e quatro horas, podia-se contar nos dedos quantas vezes o velho Chico tinha de sair às carreiras, caso contrário molhava a cueca, para esvaziar a velha bexiga.

Mas naquela manhã, de um maio que nunca iria esquecer, assim que tentou mijar, algo estranho lhe fez lembrar-se do velho pai.

Ele morreu a míngua. Com a bexiga estourando de repleta. Quando o pobre conseguiu ser atendido, tamanha era a fila do SUS, já era tarde demais. Os rins pararam de funcionar. O velho pai de Chico mal coube no caixão. De tão inchado que ficou.

Foi-lhe dado como causa mortis a doença da próstata. Uma glândula que quando incha provoca entupimento no canal da urina.

Naquela manhã, quando o já idoso Chico foi tentar verter líquido nos pés da bananeira, nada dali saiu. A não ser uivos de dor.

Um vizinho de pasto, ao ouvir os berros de Chico, levou-o às carreiras a um postinho de saúde desapetrechado de tudo e de todos. Quem o atendeu, um médico novato, que nunca teve aos seus cuidados coisa como esta, apavorado tentou inserir um canudinho fininho por sua uretra fechada. Mas nada de conseguir seu intento. Nem sonda na unidade havia.

Mas uma vez o infeliz paciente teve de esperar ser removido para a cidade distante.

Uma ambulância, caindo aos pedaços, aos trancos e solavancos acabou deixando o entupido Chico num pronto socorro da mesma forma sem a possibilidade de atender tais casos.

Ali não havia urologista. O que dava plantão na unidade acabara de ser operado da próstata.

O calvário do infeliz Chico estava longe de terminar. Foi de del em dedal. Até parar num hospital qualquer. Onde idem não havia um especialista capaz de diagnosticar tal enfermidade.

Uma enfermeira caridosa, vendo o inchaço da barriga do consultante pensou até em gestação a termo. Mas não era criança no abdome inferior do infeliz. Era um bexigoma mesmo.

Depois de dois dias e duas noites com a uretra entupida, eis que um milagre aconteceu.

Chico Desconsolo voltou a urinar, espontaneamente. Sem ser preciso passar por uma sondagem vesical. A próstata do Chico voltou ao que era antes. A medicina não sabe explicar a razão de tal milagre.

Até hoje, na roça do Chico Desconsolo, que um dia teve a infelicidade de ver a uretra entupida, quando passou pela bananeira, onde começou o imbróglio, sorri feliz da vida.

Felizmente ela sempre foi magnânima com Chico Desconsolo. E os demais, que sofrem da doença da próstata, que não têm a sorte de voltar a urinar? Eles passam por caminhos iguais. Sem chance de se tratar. O que vai ser deles. Nem mesmo Deus sabe.

Este é um país que não desejo para ninguém. Quem ousa de mim discordar?

 

 

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