Aquele teria sido seu último inverno

O dia amanheceu fumante naquela manhã madrugada. Nada se via além da serra alta que na linha do horizonte antes se podia ver. O mês de junho se mostrava com temperaturas bem baixas.

Uma camada de gelo fininho cobria a pastaria. A casinha tosca onde Seu José vivia não oferecia o conforto para os dias de inverno. Apenas as achas ainda acesas do fogão a lenha, restos do dia de ontem, crepitavam deixando no seu rastro um quentume gostoso. Bastante apreciado pelos netos daquele homem rústico, mãos caludas, que sempre vivera para o trabalho. A aposentadoria nunca lhe sorrira. Pois era ele apenas que cuidava daquela gleba de terras. E todos os aparentados acabaram se mudando pra cidade. A vocação rurícola não lhes fazia parte do currículo.

Nos finais de semana alguém da família por lá aparecia. Mas nem percebiam que os sábados viravam domingos. Entregues a bebedeiras, comedeiras, coisas que seu Zé abominava, por ser homem do trabalho, acordava cedo, ordenhava uma dúzia de vacas baldeiras, esperava o caminhão leiteiro apitar na curva da estrada, e ali levar o leite ainda espumante. Acondicionado em um tanque de frio, comprado a prestação, a última ainda por ser paga na cooperativa que um dia foi a falência, levando todos os produtores de leite à deriva.

Seu Zé era um estoico homem da roça. Caso o levassem a cidade por certo ele não resistiria.

Desde nascido ali vivia. Sempre só. A espera que um dia a morte o levasse na sua carruagem escura. Puxada por corcéis negros como o noite.

Naquela véspera de inverno Seu José contava com oitenta anos inexatos. Mas quem, desacostumado a sua pessoa, a ele daria menos.

De pele tostada pelo sol, cabelos brancos como a geada que cai no campo, olhos claros com o clarume de um dia de céu azul, o velho senhor era um exemplo de retidão e grandeza de coração. Não renegava ajuda a quem quer que fosse. Todos a ele respeitavam como um pai que em verdade foi para os filhos. Filhos ingratos. Que de vez em quando apareciam. Mas logo lhe viravam as costas. Envergonhados daquela pessoinha boa. Que nunca fez mal a ninguém.

Seu Zé ainda se lembrava, com olhos rasos d’água, de seu último aniversário.

Fez por suas mãos caludas um lindo bolo de chocolate. Por cima oitenta velhinhas mostravam-lhe a idade provecta.

Encomendou pasteizinhos de queijo a uma vizinha de pasto. Empadinhas compradas na cidade perto faziam parte da pequena festa que seria no próximo sábado.

Esmerou-se no traje esperando a família. Era inverno. Por demais frio.

Na sexta-feira fez uma faxina bem feita na casinha modesta. Deixou tudo fedendo a limpeza. O velho fogão a lenha brilhava como se fosse uma estrela desgarrada do alto.

A pequena sala de visita foi enfeitada com flores do campo.

Acordou no sábado com um estranho pressentimento. Sonhou, na noite curta da roça, que no final de semana faria uma viagem para bem longe. Para um lugar lindo, paradisíaco.

Antes de a madrugada anunciar o dia Seu Zé foi ao curral cuidar de suas vacas leiteiras. A força dos dedos encheu dois latões com um leite branquinho, da cor das asas dos anjos, seus únicos amiguinhos.

Antes das oito da manhã, já com a produção leiteira entregue ao caminhão, depois de alimentar os dez porcos grunhentos, foi ter a casa. Tomou um banho no capricho. Vestiu a melhor fatiota que possuía. Penteou os cabelos que foram alisados a brilhantina.

Ansioso pela vinda da família cuidou de todos os detalhes da festa de cumpleanos.

Enfeitou a casa toda com flores do campo.

Já era quase meio dia quando, já sem esperanças de alguém chegar, na porteira gasta pelos anos apontou um carro velho conhecido.

Seu Zé exibiu na face um sorriso enorme de orelha a orelha.

Aquele foi seu derradeiro sorriso. Naquele momento, de indelével emoção, o pobre sentiu uma pontada no velho peito. Prenúncio de um infarto já antes pressentido.

Assim que os parentes chegaram encontraram o velho homem já sem vida.

Deitado na mesma salinha enfeitada para o seu aniversário.

Um sobrinho, o qual sempre desdenhou do bom velhinho, foi quem cuidou do velório.

O mesmo bolo, com suas oitenta velinhas, foi aceso naquela noite triste.

Um padre encomendou-lhe a alma. Numa oração que exaltava toda a sua bondade.

Aquele foi o último inverno do Seu José. Não se seguiram outros.

Lá no céu quem saberia dizer? Ainda não foi desfeita esta dúvida.

 

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