O Brasil que João não queria

Desde cedo, na tenrice da idade, o pequeno João, menino estudioso, que sempre tirava notas boas na escola, acalentava um sonho desde menino.

Ser médico era o que sonhava. A profissão que elegera para si mesmo. Pois sempre teve um pendor enorme pelas ciências humanas. Pois o que tinha de melhor, além de ser bom menino, era um coraçãozinho de ouro.

Ainda lhe passava pelas lembranças de quando um cãozinho abandonado foi encontrado a beira da estrada depois de ser atropelado por um carro desgovernado.

O pobre estava vendo a vida pouco a pouco se despedir de seu corpinho esquálido. Foi quando o menino João, ao ver o seu estado, levou-o a casa, cuidou dele com o maior carinho, até vê-lo recuperado. Desde então foi o cãozinho sem raça o maior amigo do menino João.

Já na escola, sob a tutela do estado, o amor pelos demais se mostrava mais e mais no conceito dos colegas, passando pelos professores, os quais torciam pelo sucesso do menino João.

E como foi difícil entrar na faculdade! Joãozinho não podia pagar uma universidade privada. Seus pais não tinham recursos. Eram pessoas trabalhadoras. Mas percebiam tão pouco pelo trabalho que mal dava para manter a casa. Por sorte daquela família só nasceram duas crianças. Eram duas boquinhas famintas para alimentar.

João passou três longos anos para conseguir sucesso no vestibular. Afinal, depois de muitas noites montado nos livros, afinal o sonho do pequeno João começava a dar sinal de vida.

Ainda se lembrava, como olhos rasos d’água, de quando recebeu o trote. Teve a cabeça raspada. Pintaram-lhe o corpo quase desnudo. E passou dias e horas intermináveis a mendigar moedas num sinal luminoso. Sob os olhares de escárnio dos veteranos.

Foram seis anos de estudar constante. No último deles, ainda sem saber qual caminho seguir, foi plantonista num hospital de um bairro de periferia daquela cidade grande.

A primeira noite passada, sem dormir um segundo sequer, sem alguém a lhe dar cobertura, foi chamado a atender a um acidentado grave. O quase doutor fez o que pode para salvar a vítima. Mas foram debaldes suas tentativas. O pobre fechou os olhos numa fração de segundos. O inexperiente doutor nunca havia visto tanto sangue em sua vida.

Depois de enfrentar outro vestibular, ainda mais concorrido que o primeiro, o já graduado Doutor João foi chamado, depois de muita espera, a residência de uma especialidade cirúrgica. Era aquilo com que sempre sonhou.

Foram mais de cinco anos enfrentando a frieza de um bloco cirúrgico. Operava bem cedo pelas manhãs. A tarde voltava ao mesmo lugar. A noite passava em claro. Pensando no resultado das operações.

Cinco anos se passaram. Mas doutor João precisava ganhar a vida longe daquele espaço. A concorrência era enorme. Naquela cidade grande não cabiam mais cirurgiões.

E ele teve de se mudar.

De malas e bisturi em punho, sonhando salvar vidas no interior, quis o destino que doutor João fosse parar numa cidadezinha desapetrechada de tudo. Ali não havia um só hospital. Apenas e tão somente uma unidade de saúde básica. As tais Upas, de quem falam tão mal.

No primeiro dia de trabalho chegou uma mulher em trabalho de parto. Mas o doutor João, vendo a coisa complicar, sem chance de retirar o bebê por vias normais, decidiu que uma cesárea era necessária. Embora não tenha sido obstetra, seria capaz de operar a pobre parturiente. Mas como fazê-lo naquela hora? Se nem sala de cirurgia a carente unidade tinha?

Foi quando, impassível, assistiu a pobre enferma se esvair em sangue. Ela perdeu a criança. Sob os olhares desconsolados do infeliz cirurgião em começo de carreira.

A primeira semana, de consultório vazio, o infeliz doutor viu continuar seu martírio. Outros casos quase iguais apareceram. Um acidentado morreu. Um infeliz infartado teve seu óbito constatado. Outros, sem nada poder fazer por eles, tiveram a mesma desdita. E a ambulância da pequena cidade estava com o motor avariado.

Um mês inteiro se foi. Doutor João, numa manhã de maio, fazia frio naquele dia, ao chegar a sua unidade de trabalho, percebendo que nada poderia fazer, a não ser atestar mais óbitos, teve um ataque de fúria.

Sob olhares complacentes de suas auxiliares acabou quebrando tudo ao derredor. Não sobrou mesa sobre copos. Papéis foram espalhados por todas as partes. A polícia foi chamada a intervir. Um BO foi lavrado.

O pobre doutor foi levado à delegacia. Só não foi preso por intercedência do gestor de saúde local. Fiança não poderia pagar. Pois o seu primeiro salário ainda não fora pago. Em sua conta bancária não havia um tostão inteiro. Doutor João morava de aluguel. Por sorte ainda não havia se casado.

Depois de um ano inteiro na mesma situação, com a pequena cidade abandonada pelo poder público, sem conseguir mudar o status quo, eis que o bom doutor acabou se mudando para outro país. Talvez lá ele fosse feliz…

Antes de fazer as malas, na tentativa de melhorar de vida, doutor João, desconsolado com a carreira que prometia tanto, foi entrevistado por um repórter, de uma emissora que tem o globo como mote.

E ele teve a audácia de lhe perguntar: “como seria o país que você gostaria de ver um dia”?

João parou, refletiu, e respondeu sem pestanejar: “certamente em nada parecido com o que está aí”. Sem mais delongas o doutor partiu.

 

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