Metade de mim ficou lá

Antes pensava que o ser humano era indivisível. Embora, como médico cirurgião, bem sei que todos nós somos feitos de partes intimamente ligadas.  Listadas a seguir: cabeça, tronco e membros.

E dentro delas cada uma abriga fatias importantes do nosso corpo. Cada uma com sua função. A de cima pensa. Comanda o que vem por baixo. Já o pescoço é o elo de união entre o cérebro e seus comandados, como soldados em um batalhão.

O tórax não apenas acolhe o coração. Que não apenas é feito de músculos que contraem. Como idem abriga o amor, o carinho, e outros sentimentos menores, que todo ser pensante tem como defeitos maiores. Já o abdome nada mais é do que um reservatório. Local por onde o corpo humano excreta os seus dejetos. Que mantém a homeostase do conjunto perfeito que alguém criou, a sua imagem e perfeição. As pernas são artefatos locomotores. Pena que muitos pensam que elas foram feitas para descansar. E usam os carros em seu lugar.

Metade de mim é cidadão urbano. A outra metade não nasceu na cidade. E sim na roça que tanto amo.

Desde quando aqui cheguei, sonhando ser alguém, pensei que todo médico podia ser fazendeiro. Ledo engano o meu.

A medicina me desafiava. As cirurgias faziam parte da minha rotina citadina. Mas, aos sábados, desvestia o branco diáfano da roupa, trocava a indumentária própria, passava a usar botinas surradas, e lá ia eu, feliz, à roça que tanto amava.

Passei anos e anos pensando na razão de o leite ser branco e a vaca ser de outra cor qualquer. Fiz catiras com um vizinho esperto. Levei manta. Mas acabei sabendo que vaca de três peitos não da leite como as de quatro.

Levava na caçamba da caminhoneta ração a dar as vacas. Muitos medicamentos. E dali só trazia poeira, carrapatos, e muitas histórias para contar.

Foram anos e desenganos naquele aprendizado que até hoje trago na cabeça. Até que descobri que roça só da lucro aos olhos do dono. Mesmo assim perseverei na lida. Foram mais de trintanos de prejuízos. Até que tomei uma sábia decisão. Finalmente arrendei meu pedaço de chão a um amigo. Mas não consegui me afastar do meu sonho rurícola.

Para não ficar longe da minha rocinha encantada acabei por construir uma casa beira lago. A casa amarelazul agora faz parte de um passado remoto. É onde mora o arrendador das minhas terras.

Todos os sábados para lá vou. Metade de mim continua a amar aquela vida simplesinha. Acordar cedo, dar de comer as galinhas, ouvir o cantar do galo. O grasnar rusguento das maritacas nos tempos de jabuticaba madura. O grito esfomeado dos porcos grunhentos. O farfalhar do vento quando chega o outono. As vacas deixando o curral mugindo de saudade dos seus bezerrinhos. O leite espumoso saindo das tetas das vacas baldeiras. E como é bom tomar leite quentinho numa caneca adocicada com açúcar no fundo. E lamber o bigode branquinho feito com os restos do leite.

Amo a sinceridade e lealdade do caboclo nascido na roça. Para ele basta um aperto de mão. Suas mãos caludas pra mim são o resultado da luta renhida. Acordar cedo para eles nada mais é do que um prazer. Não obrigação.

Metade de mim nasceu na cidade. A outra metade não tem o umbigo enterrado debaixo da bananeira. Mas o coração…

Sempre que posso, e faço o que posso acontecer quase sempre, para lá vou aos sábados bem cedo. Levo pão quentinho para tomar café na roça que ainda é minha. Metade é minha. A outra metade a reparto com a gente boa nascida por lá. Sei que pouco entendo de vacas. Como penso entender de pessoas enfermas.

Quando deixo a roça, antes do meio dia, como desejaria ficar por lá. Pena que meu trabalho ainda é aqui. Não tenho como viver acolá.

Se um dia, quem sabe, puder conciliar minha vida do lado de cá, com o de lá, talvez me mude definitivamente para o lado de lá.

Bem sei que metade de mim nasceu na cidade. A outra metade gostaria de viver do lado de lá.

Hoje sou feito de duas metades. Uma tem a cara da cidade. Já a outra sente saudade do mugido de vaca e cheiro de curral.

Metade de mim fala certo. A outra metade não se importa com o falar das cidades. Mas, se um dia pudesse escolher, como melhor dizer, por certo abdicaria da correção. Meteria o pé pelas mãos. Já que metade de mim vive aqui. A outra, por certo, viveria mais feliz, do lado de lá. Onde canta o sabiá, passarinha o assanhaço, e pula de galho em galho o canarinho da terra, antes pardinho, agora amarelinho como goiaba madura.

Perdoem-me tantas conjecturas. Mas metade de mim fala certo. A outra gosta mesmo de falar estropiado.

 

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