Houve um tempo

Hoje o dia amanheceu debaixo de uma densa cerração. Um friozinho gostoso meu viu descer a rua. Tudo era branco no entorno. Mal se via nada na linha do horizonte. Salvo o brancume do dia.

A serra que daqui se avista, aquela rua de tantas lembranças ternas, mesmo o casario branco parecia dormir envolto numa névoa escura.

O relógio daquela pracinha perto de minha casa mostrava quinze graus centígrados. Pela primeira vez vesti uma blusa cinza. Da cor do dia que amanheceu cinzento.

Confesso que aprecio os dias frios. Mas o céu azul faz falta. O outono faz deitar folhas mortas ao chão. Atapetando-o com as folhas que caíram da árvore mãe.

Sei que mais tarde o sol acorda. Ele também tem o direito de dormir entre nuvens densas. Logo ele mostra seu sorriso amarelo. E eu me regozijo pelo clarume do dia.

Minha alma carece de claridade para se abrir num sorriso. Todo meu eu precisa de alegria para continuar vivo.

Lá venho novamente falar de saudades. O passado está intimamente ligado ao meu cerne.

Ainda me lembro dos velhos anos. De quando era ainda jovem. E ia a escola naquele uniforme verde mata. Levando uma mochila às costas, cheia de livros e cadernos de pauta.

E como eram bons aqueles verdes anos. Ainda me lembro como se fosse hoje.

Pena que o tempo passarinha. Da mesma forma que os passarinhos avoam.

Houve um tempo em que era jovem e cheio de sonhos. Muitos destes sonhos não se concretizaram.

Em criança não sonhava tanto. Agora sonho como se fosse menino. Ai que saudades eu tenho de quando podia sonhar acordado. Agora quando sonho sou presa fácil da insônia. Preocupado com o amanhã. Com o depois do amanhã. Com o que vai ser de mim, dos meus filhos e netos, neste país à deriva.

São tantas as preocupações que me assaltam que elas não cabem nos dedos das duas mãos. Nem juntando os pés com as mãos.

Houve um tempo, ainda jovem, quando nem pensava tanto. Hoje os pensamentos recheiam minha cabeça de ideias. A maioria delas são pessimistas. Frutos dos tempos modernos.

Houve um tempo quando apenas pensava em folguedos. Agora eles voaram como passarinhos.

Talvez seja pela idade em que me encontro. Não sei quantos anos mais me esperam. Não sei se chegarei à idade de minha mãe. Do meu pobre pai tomara vá mais longe.

Houve um tempo quando apenas sonhava em ser médico. Agora este sonho se fez realidade. Mas não sei por quanto tempo mais irei percorrer este caminho tão difícil. Dado as circunstâncias em que fomos inseridos.

Antes apenas vivia o dia de hoje. Agora vivo pensando no futuro. Nos anos a frente de onde estou. Quantos deles ainda me restam? Se digo que serão muitos por certo estarei faltando com a verdade.

Houve um tempo, quanto tempo foi isso?, em que sonhava ganhar muito dinheiro. Agora a fortuna não me seduz tanto assim.

Confesso que me encontro mais tranquilo. Pois o que fiz já foi muito. E as preocupações que me assaltam não dizem respeito a mim.

Houve tempos em que não me contentava ficar em paz comigo mesmo. Agora todas aquelas ambições viraram fumaça. Como a névoa brancacenta que hoje tapou a boca do sol e o fez calar. Mas sei que mas tarde ele vai falar.

Tudo isso parece ter uma explicação convincente. Estaria ficando velho? Cansado? Gasto pelos anos?

Houve tempo que não era assim. Talvez seja fruto dos desenganos. Da vida que não me deu de presente os mesmos brinquedos que pensava ter. Nos verdes anos de antão.

Houve tempo, confesso, que a correria na qual me encontro agora, pulando de emprego em emprego, sem tempo de pensar em mim, de me reconciliar com a paz que os anos me dariam, afinal a aposentadoria ainda não me acena, quando afinal terei tempo para desfrutar de uma velhice segura, sem as preocupações de agora, sem a obrigação de acordar cedo, de ir caminhando rápido para escrever antes das oito, quando o primeiro paciente chega, para continuar na mesma rotina na manhã seguinte?

Tomara, num futuro não muito distante, de agora, tenha tempo para me dedicar tão somente às coisas que aprecio.

Houve tempo quando tudo isso que acabei de escrever não era tão importante como é agora.

Tomara tenha tempo para pensar em mim. Que o tempo tenha mais clemência com o que resta de mim…

 

 

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