“Pra quem vou contar minha tristeza”?

Uma densa cerração amanheceu naquela quarta-feira fevereiro findo.

Nada se via a não ser uma fumaça branca. Tudo estava encoberto. A serra alta, o verdume do pasto, as vacas ainda não haviam acordado da noite anterior. Nenhures passarinho cantava naquela hora temprana. Tudo na roça do Zé Enxada fedia a desalento. Inclusive ele por dentro se mostrava assim.

Desde que a esposa o abandonou, fugiu sem maiores explicações de carona no velho caminhão leiteiro, o pobre homem se viu de repente entregue a ele mesmo. Sem filhos, sem a quem deixar seus genes, sem compromisso algum com algum aparentado, nada mais restava aquele homem bom senão passar o resto dos seus dias confabulando, ora com um cupim morto, de vez em quando com um vizinho de cerca. Que raras vezes por ali passava.

E a rotina enfadonha fazia estragos em sua vidinha sem atrativos.

No máximo em dois finais de semana ia à cidade perto. Na intenção simples e pura de comprar mantimentos, roupa nova, e fazer uma visitinha rápida a um padre confessor.

Zé da Enxada não tinha pecados maiores. A não ser quando se viu em dificuldades financeiras e teve de rolar a dívida que acabou não pagando, por absoluta falta de dividendos.

A vida na roça era qualquer coisa de deixar gente cabeluda com cabelos brancos e faltosos. O preço do leite foi a nível mais baixo na sua história. Menos de noventa centavos o litro. Mesmo assim o lacticínio era exigente ao extremo com o produto. Fazia questão da qualidade das instalações, media o teor de gordura, e contava as bactérias com a lisura de um laboratório de universidade de primeiro mundo.

Ao receber o pago do leite do mês, mais uma desventura passava pela cabeça cheia de problemas do pobre rurícola. Como saldar a dívida com a cooperativa? Que acabou falida deixando aos pobres cooperados a importância enorme as suas costas já curvadas pelos anos ingratos.

De repente começou a chover. E era tempo de encher os silos feitos num barranco que veio a desmoronar. Sabe-se que silagem molhada logo azeda. Foi exatamente isso que aconteceu ao pobre Zé.

O desafortunado acabou perdendo toda a roça de milho que antes estava linda. E naquela noite escura passou-a em branco, pensando nos problemas tantos.

Na manhã seguinte a melhor vaca do curral foi encontrada morta servindo de pasto aos urubus. Mesmo assim o infeliz Zé foi à luta. Não lhe restava alternativa senão continuar na profissão.

Já era quatro da tarde quando um súbito mal estar tomou conta do corpo exausto do pobre matuto da roça. Era uma dor no peito sufocante. Que o fez jogar pra fora todo o produto ingerido horas antes.

Por sorte não foi nada mais que uma azia consequente a refluxo. Não era um infarto como se supunha antes.

Mais um dia sem nada que o fizesse alegrar-se.

Com a safra do milho perdida, com o preço do leite despencando, a renda mais e mais minguando, a infelicidade do pobre Zé era tamanha que não se podia medi-la em metros. Eram quilômetros e mais deles amontoando-se em sua folha corrida.

Zé não se alimentava a contento. Pelo seu peito antes forte entrou-lhe adentro um súbito desalento. O sono não lhe tomava as noites. Ele as passava em claro tentando contar os pingos da chuva que lá fora se faziam ouvir. Acabou deixando as vacas a Deus dará. Não mais cuidava dos porcos e das galinhas. A pastaria antes bem tratada acabou num sarandi danado.

Só não foi pra cidade por falta de quem lhe comprasse a propriedade.

O infeliz Zé da Enxada entrou em depressão. Emagreceu à costelas vistas. Olheiras profundas sulcavam-lhe o canto dos olhos. Quem o visse agora e em tempos antes era levado a pensar em coisa pior.

Acontece, por sorte dele, um vizinho de pasto levou-o a um psiquiatra. Foi hora e meia de consulta paga. Zé pouco falou. Mas dali saiu com uma receita onde se viam vários fármacos. Todos de tarja preta.

De nada adiantou a visita ao tal médico especialista. Zé voltou à roça ainda pior.

Um dia, era tarde, o mesmo vizinho amigo foi visitá-lo. Preocupado com seu estado de tristeza absoluta.

Dentro de casa Zé não estava. Nos fundos da horta da mesma forma ele não se via. No curral da mesma forma Zé se ausentava.

Foi quando, quase desaminado de procurar o amigo, o vizinho amistoso o encontrou falando ao cupim morto.

Ele estava de cócoras. Semi escorado pelos calcanhares. De olhar perdido no nada o pobre Zé assim falava ao cupim: “amigo confidente. Você é o único que me ouve. Quero deixar esta vida ingrata. Cansei-me de tudo. Desejo partir ao além. Por favor, me ajude! Pra quem vou contar minha tristeza se você é o único que me escuta”?

A partir de então não soube mais o destino do pobre Zé da Enxada. Dizem, nos arrabaldes, que ele sumiu na braquiária. O próprio cupim morto não me deu notícias dele. Talvez tenha sido seu fim.

Deixe uma resposta