Mesmo assim ele canta

Já tive vários passarinhos em gaiola. E ainda os tenho. Eram pássaros que não sabiam viver de outra maneira. Um deles, um trinca-ferro criado em cativeiro desde filhotinho, depois de ouvi-lo ensaiar o primeiro canto fiz de tudo para que ele voltasse para onde veio: uma mata fechada. Onde foi pego por um menino passarinheiro. Depois ele me foi feito presente. Encantado com o trinar de trinca-ferro dei a ele o nome de Zé Amâncio. Nunca deixei de faltar-lhe todo o conforto. Oferecia-lhe água fresca todas as manhãs. Frutas do seu apreço. Ração própria daquela espécie alada. Zé Amâncio era meu despertador. Não precisava olhar o relógio de cabeceira. Era seu canto que me fazia alerta.

Num dia cedo, ao achegar-me à gaiola do pássaro cativo, notei-o tristonho. Ele não me despertou como de vezes antes. Observei-o empoleirado no mesmo poleiro de sempre. Naquela manhã, e noutras também, não o escutei trinar.

Zé trinca ferro mudou o comportamento. Tentei conversar com ele. Ela não me confidenciou todo o encanto costumeiro.

Talvez ele estivesse infeliz na gaiola. Por que não soltá-lo? Ele estava comigo há mais de dois anos. Não estava velho. Como eu me sentia naqueles anos.

O antes pássaro de canto mavioso emudeceu. Não mais o ouvia me despertar como dantes.

Naquela manhã distante abri a porta da gaiola. Zé não a deixou como esperava. Passei minutos tentando entender a hesitação daquele pássaro canoro. Até tentei afugentá-lo docemente. Não consegui na primeira tentativa. Na segunda da mesma maneira ele não arredou asas do poleiro costumeiro. E ali ficou a me olhar distante.

Até que, num momento quando fiz menção de ir embora, deixá-lo entregue a sua infelicidade tristonha, eis que o trinca deixou a gaiola, num voo curto e hesitante.

Ele pousou logo perto de sua morada. Não foi mais além da varanda onde passou anos a fio. Cantando a sua felicidade. A qual passou a ser parte da minha.

No dia seguinte, ao descer a onde o trinca morava, o mesmo tentava entrar novamente pela porta fechada de sua gaiola. Tentei convencê-lo a voar. Ele me olhou de soslaio, e com um meneio de cabeça fez que não queria voltar a mata de onde veio. Não tive alternativa senão abrir a porta da sua morada de arame e deixá-lo voltar a vida que sempre foi acostumado desde filhote. Ele não seria feliz em liberdade. Como eu sempre quis desde a tenra mocidade.

A partir de então o trinca voltou a cantar. Zé Amâncio voltou a ser meu despertador. E passamos juntos mais anos e anos felizes da vida. Até que um dia, ao passar perto de sua gaiola, encontrei-a vazia. Parecia que meu trinca havia escapado. Movido por um impulso, num átimo, ao abaixar a cortininha de sua gaiola, dei com o pobre Zé esticado no chão. Ele morrera de velho naquela noite escura. Daí não tê-lo ouvido cantar.

Desde aí outros trincas passaram-me pelos ouvidos. Que canto maravilhoso eles têm!

De anos para cá, dada ao fatídico acontecido a outros pássaros como o Zé, não mais tive trincas aprisionados.

Já hoje apenas um canarinho belga me faz companhia. Ele não se faz ouvir cantar em horas tempranas. Como o trinca falecido noutra gaiola. Como outros trinca-ferros distantes.

Apelei-o Russinho. Como ele é parecido ao meu netinho Theo. Theozinho não canta. Mal sabe falar.

Ao ver pássaros cativos, cantando sem motivo aparente, e ao constatar pessoas infelizes, tendo de tudo para cultuarem a vida linda que se apresenta a nós, e não são, ao ouvir canarinhos, outros pássaros cantando mostrando alegria, caso sejam soltos eles param de trinar, penso, imagino.

Hoje, ao deixar a casa rumo ao trabalho, era bem cedo ainda, ouvi meu canarinho cantar. E ele estava engaiolado. Feito prisioneiro por vontade própria.

Já eu desci a rua sem a alegria costumeira. E percebi, durante a caminhada, neste dia lindo, outras pessoas amarguradas, sem vontade de cantarolar. Elas saíram da cama sem a mínima vontade. A meu exemplo.

Russinho canta mesmo dentro de sua gaiola. E a gente, com tudo a nosso favor, vivendo dias lindos, outros nem tanto, por que não cantar a vida? Se ela nos oferece de tudo para sermos felizes. Imaginem se alguém nos pusesse entre grades? Seriamos prisioneiros com razão de nossa tristeza.

Gente, somos livres, temos saúde, somos capazes de tudo, por que não cantamos a alegria? Ela mora tão perto da gente, é só levantarmos a mão e os olhos pro alto. Somente só.

O canarino Russinho canta dentro de sua gaiola. Cantemos fora da nossa. Enquanto a vida nos oferece o encanto costumeiro. E quando a morte chegar, aí sim, teremos razão de sobra para pararmos de cantar.

 

 

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