Mais um dia sem a luz do amanhã

Era mais ou menos cinco da madrugada quando meus olhos se abriram. O horário velho de volta me permitia saber que eu estava mais velho um dia. Dos atuais sessenta e oito menos horas, minutos, a mim perguntei, quantos dias meses, anos me restam? A resposta ignorei.

Uma chuva mansa caiu na noite de ontem. Pelos vidros da janela a percebi molhando a relva seca do jardim. Um cheiro de folhas molhadas penetrou-me as narinas. Que sensação agradável perceber que o secume quente do dia de ontem, domingo, cedeu lugar a uma brisa fresca. Tudo ao derredor, inclusive a seringueira desterrada que vela meu sono curto aplaudia entusiasta os pingos de chuva que de repente desceram do alto.

E eu saí de casa depois de lavar o rosto envelhecido no banheiro contíguo ao meu quarto de dormir.

Hoje acordou dezenove de fevereiro. O carnaval se foi levando suas fantasias coloridas. Os blocos deixaram a avenida na intenção de voltar no ano vindouro.

Ainda uso as pernas para me deslocar de lugares díspares. Quase não preciso de rodas para caminhar. De vez em quando corro. Como é bom sentir o vento assoprar levemente meu rosto pelas estradas por onde vou. Sabedor que volto quando o cansaço chegar.

No dia de hoje, fevereiro quase em seu final, lembrei-me de um amigo que se despediu da gente em tempos breves. Eu e ele tínhamos a mesma idade. Um ano a menos a meu favor.

Quase sempre o visitava antes do seu passamento. E como me era duro, meus olhos lacrimejavam, quando o via vestindo seu corpo esquálido, despedindo-se do hoje, sem saber quantos amanhãs ainda tinha pela frente. Bem sei que ele lutava para que outros amanhãs de repente o despertassem de seu sono letárgico.

O bom da vida é ignorar o que vem adiante. Hoje temos saúde. Amanhã?, depois de depois de amanhã, melhor pensar como se fosse hoje. Dia que começou fresco. O sol reluz neste exato momento. Tomara de noite chova novamente. E a gente consiga viver sem o constrangimento de vaticinar que hoje será um dia melhor que o passado ontem. Melhor não saber o que vai ser amanhã, ou outro dia qualquer.

Nos meus quase setenta anos, faltam dois, prefiro continuar como estou. Sabendo que vou. Mas ignorando o que vai suceder no depois de depois de amanhã.

Já este meu amigo, sobre o qual escrevi uma crônica quando do seu falecimento, escritor profícuo, lutava aguerridamente contra pertinaz enfermidade. Que acabou vencendo-o na batalha entre a vida e a morte. Cruel e tinhosa realidade que nos marca desde o nascer ao morrer a aurora. Ainda tenho seu whatsAp no meu celular. E a ele envio meus textos. Não sei se ele os recebe, onde estiver. Tomara.

Quando passava em sua morada sentia-o desfalecido. A morte talvez, naquele dia, lhe fosse o melhor caminho. Meu amigo estava agonizando. De nada adiantavam os esforços hercúleos que toda a sua família fazia para mantê-lo atrelado à vida.

Não sei quantos amanhãs me restam de hoje em diante. Para o meu amigo, recém-falecido, da última vez que o vi, melhor se outros dias lhes fossem curtos. Ele sofria demais e eu padecia o mesmo sentimento junto a ele. Embora ainda em saúde plena. Mas sentia-lhe o desalento.

Vivo sem pensar no amanhã. Vivo o dia de agora intensamente. Procuro não pensar em outras coisas a não ser em ser feliz. Doenças, fraquezas, por vezes as tenho. Mas as ignoro. Desdenho-as. Esforço-me por viver em saúde plena. Nos meus quase setenta anos poucas vezes fui à cama. A não ser para tentar dormir. Como médico bem sei que deveria procurar colegas para tentar afugentar doenças. Mas continuo assim. Teimoso, convicto, sem fazer exames de rotina. Para que procurar doenças se elas um dia aparecem? Prefiro continuar a andar pelas próprias pernas. A correr nas tardes quase mortas. A frequentar academia diuturnamente.

Talvez assim eu consiga viver mais um dia vislumbrando a linda luz do dia de hoje. Sem pensar no amanhã. Sei que o amanhã há de vir. E, quando ele chegar, estarei preparado para dormir o sono eterno. Feliz sem me preocupar com outros amanhãs.

Morrer em saúde plena, dormindo, sem acordar, será meu desidério final.

Que se danem os amanhãs. Que venham sem serem notados. Devagar. Mansamente, alegremente, felizmente assim penso há de ser. Enquanto a vida estiver presente. Como um presente de um ser que não se deixa ver. Mas existe. Pelo menos no meu entender.

 

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