Ainda bem que tenho com quem repartir o fardo pesado dos anos

Um dia imaginei um fato que me fez pensar no peso dos anos.

Estava eu numa ilha deserta, a sós com meus pensamentos, dormindo debaixo de um coqueiro, tendo por companhia apenas a solidão dos meus lamentos.

Defronte tão somente água do mar. Atrás a imensidão do oceano. Cercando-me à direita e a mão esquerda da mesma forma águas azuis. Nada mais. Uma nesguinha de areia branca servia de capacho onde pisar. Nenhuma conchinha de nada era vista naquela pequenina ilhota perdida no meio do oceano. De vez em quando peixes maiores passavam ao largo.

Dormia solitário naquele pedaço de terra cercada de águas por todos os lados. Afinal era apenas uma ilha e eu. Tão somente sós.

Era ainda jovem mancebo. Não tinha o peso dos anos a me cavalgar as costas.

De repente, não mais que num repente, fui levado por uma onda enorme de volta a civilização.

Era uma cidade grande que me acolheu e pensei dar fim a minha solidão.

Embora estivesse cercado de gente por todos os lados, o mar azul se fez ausente, me sentia solitário. Eram desconhecidos a minha volta. Nenhuma pessoa com quem pudesse me abrir. Confidenciar minhas angústias. Fazer a elas sabedoras da minha tristeza súbita. Afinal a tristeza era minha. E não delas. Os circunstantes estavam preocupados demais para compartilhar tudo aquilo que me consumia as entranhas. A pressa lhes era por demais pesada. Cada um com seu problema. E nenhum deles se preocuparia para repartir os meus.

Acabei tendo saudades daquela ilha deserta. Ali não tinha com quem conversar. Mas naquele amontoado de pessoas da mesma forma não.

Com os peixes não podia falar. Com as pessoas também não.

Já que tinha de viver na cidade, no meio do mar era inexequível nem pensar, acabei por morar na azáfama do burburinho frenético da multidão.

Ali tinha como me alimentar. No meio do mar nem pescar poderia. Pois com as mãos desarmadas era impossível.

Mas, com o tempo passando, sentindo na pele enrugada o peso pesado do fardo dos anos, minha juventude perdendo seu espaço, acabei encontrando uma pessoinha linda com quem passar o resto dos anos.

Um dia nos casamos. Ao lado nosso vieram filhos. Netos lindos acabaram sendo acrescentados aos nossos já andados anos.

A vida parecia ficar menos pesada. Tinha com quem conversar. Às vezes falávamos palavras duras demais. Discussões acaloradas deixavam em cacos nosso bem estar. Mas acabei concordando que era bem melhor do que ficar calado. Como naquela ilha deserta no meio do mar. Anos e anos se passaram.

Acabamos, nós dois, ficando velhos. Idosos estávamos. Colecionamos juntos, naqueles anos longos, juntos mais de cento e vinte deles. Em pouco tempo ficaríamos quase duzentos. Tomara ainda saudáveis e fortes. Pois entregues a um leito, sem saber contar as horas e anos, melhor que alguém nos levasse a um plano superior.

Hoje acordei, nesta sexta-feira, véspera de carnaval, abraçado à companheira que escolhi a quase cinquentanos atrás. Foram dez de namoro e quarenta anos inteiros de matrimônio.

Ainda não me considero tão idoso. Em breve estarei amuletado, usando fraldões, mal sabendo para que serve isso, ou aquiloutro.

Encontro-me cônscio das minhas querenças. Sei que a lucidez ainda faz parte indelével de mim.

Por este mesmo motivo posso dizer. Ou deixar escrito: “ainda bem que tenho com quem repartir o fardo pesado dos anos”.

Tomara por muitos e muitos anos.

 

 

 

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