Enquanto lá fora ele festeja…

Pela internet soube do rega- bofe de um famoso jogador de futebol. Não que ele não seja bom com a bola nos pés. Ao revés. Ele faz diabruras com a redonda. Por este mesmo motivo foi comprado a um time francês pela maior soma até hoje paga a um futebolista. No meu entender talvez ele mereça tal soma polpuda. Mas, no meu entendimento por que não darem valor, um cadinho menos, a quem vive na roça? O roceiro coleciona calos nas mãos. Usa botina furada. No corpo empedernido a vida lhe faz montar todo tipo de adversidades. Luta contra tudo e contra todos. Não se desanima com o preço vil pago ao litro de leite. Isso na estação chuvosa, quando a produção aumenta. Ele e seus congêneres deveriam ser agraciados com uma renda melhor. Mais em conformidade com suas fainas diárias. Com suas lutas para trazer a vaca parida do abrigo mateiro onde ela se escondeu. Isolando-se das iguais para defender a cria.

Zé do Leite acorda ao despontar dos raios do sol. Requenta o café de ontem mesmo. Com ele meio quente, meio fresco, joga na goela mal dormida um pedaço de broa fria. Já que pão francês apenas no país do rico jogador assina baguete. E outros pães metidos a besta. Isso sem deixar de lado o foie gras, o patê de fígado de ganso e o caviar beluga. Fora o champanhe com nomes chiques. Que custam muito mais que um caminhão de leite inteiro.

Zé do Leite jogava futebol, quando o tempo deixava, num campinho cambeta, que hoje virou pasto por falta absurda de tempo, que para ele escasseia mais e mais. E não tem com quem chutar a bola recém-costurada, que quando bate na bunda da vaca ela muge de descontente. Por falta de valorizar o produto rico que nasce em suas tetas.

Neste mundo tão díspare, onde aqui faz sol, la fora a neve cai, o frio predomina, conquanto o riquinho jogador de futebol, ah! quem me dera ter metade da quíntupla parte de seus rendimentos, fica cá o meu lamento. Quando a festa alcança altas madrugadas, na sua roça molhada Zé acorda com uma estranha sensação de que algo vai de mal a pior com o gado que recém retirou do roçado. Já que a cerca de arame farpado, a qual não remendou por falta de tempo, não de cuidado, acabou varando a mesma cerca, foi ao pasto do vizinho arreliento, foi preso no curral, e dali ficou esfomeado horas e horas a fio. E a produção leiteira foi ao fundo do balde. Fora o dia quando a luz se fez ausente. E o leite deixado no tanque resfriador azedou. A ordenha não funcionou, em falta de gerador tudo ficou estropiado. Inclusive o pobre Zé do Leite sofreu uma dor de dente danada. Não lhe restando outra opção senão arrancar o pobre canino da frente com uma linha de pesca. Como doeu-lhe tanto a boca quanto o coração. A se ver no espelho quebrado a banguelice mil e um.

No mesmo dia o jogador biliardário, aquele que levou ao país onde jogava inúmeros amigos, idem famosos e ricos, ao custo que nem a vida inteira ganharia o pobre Zé do Leite Azedo, como ficou conhecido depois do incidente da falta de energia naqueles lados. Nem precisava dizer o que a mídia internacional buzinou aos nossos ouvidos moucos.

Entrou fevereiro. Vesperou carnaval.

Enquanto lá, no estrangeiro, a festa continuava para o jogador brasileiro, aqui, na roca do Zé Leite Azedo a luta não podia parar.

A chuva dava o ar de sua desgraça. Ela, em quantidades moderadas, é vista com olhos brilhosos para a gente do campo. Mas, quando ela deixa em seu rastro ranhuras na estrada, ela fica intransitável, o barro se faz presente, onde os caminhões leiteiros atolam, e não têm como chegar ao curral, dane-se o Zé do Leite! E justamente naquela manhã, quase madrugada, quando a festança do jogador está longe de ir ao fim, o trator de terceira mão deu BO. O radiador chiou. Fez fumaça e parou no meio do morro, com mais de mil litros de leite fresquinho. Naquele dia a luz não faltou. E o caminhão do laticínio exigente, que paga ao produtor menos de um real, não tem como descer o morro. Nem subir. E toda a produção de dois dias, importância fundamental para pagar o custo alto da ração, foi ribanceira abaixo. Dane-se mais uma vez o Zé do Leite Preco Vil. Para as favas todos os seus sonhos de que no ano que vem tudo vai melhorar. Essa cantilena parece grudar naquela boa gente da roça. Quem tem roça ama as vacas. Os cães, as galinhas, os patos, não deixam de fora os animais de tração, por quem tem verdadeira atração maior. Os mais lindos animais da terra: os cavalos e suas fêmeas.

A efeméride do jogador milionário, ao qual foi pago uma fortuna, para qualquer sultão endinheirado, estava longe do seu apogeu. No dia seguinte não haveria treino, pelo menos para ele e seus convivas. Mulheres lindas, Marias chuteiras de ouro e prata, desfilavam nuas pelo salão. E nenhuma delazinhas exibiam nos derrières plastificados os “não me toquem”. “Estou aqui para isso mesmo”. “Não é sim”, tatuaram elas.

Neste ínterim Zé do Leite Vencido lutava contra o touro desconfiado. Pela vaca Braúna tinha verdadeira paixão. O mesmo sentimento que movia o touro bravo. Quantas e quantas vezes os dois iam às turras. Pelo rabo sedoso da vaca mestiça.

Pelas vacas moçoilas, lindas e ainda casadoiras, as que se exibiam desnudas no salão, não havia disputa. Cada um levava pra cama a que melhor lhes conviessem. Sem causar ciumeiras ou mugidos de descontentamento.

Enfim, finalmente, o relógio acordou de repente os convidados. Meio dia de outro dia. Para o Zé do Leite já era quase hora da janta. Metade do dia para ele já era hora de encarar a segunda ordenha. Já de muito roçara os pastos, remendara cercas, e estava prestes a ir à roça de milho colher algumas espigas para fazer curau.

E o jogador famoso estava ainda longe dos gramados. Do moderno centro de treinamento, de se manter em forma para o próximo jogo. Naquele cai cai de sempre já que era sempre caçado em campo. Já que em verdade era bom de bola e boa gente. Só que tinha um costume que desagradava aos oponentes. De fazer-lhes de bobo com seus dribles geniais.

A festa do jogador enfim terminou bucolicamente. Cada um pro seu canto do continente.

Conquanto para o tinhoso Zé do Leite a festa trabalho duro longe estava do seu epílogo. Era seis da tarde. Noite para ele e seus iguais.

O caminhão leiteiro não desceu o morro agudo. O trator enguiçou. A vaca sumiu na invernada. A chuvadonha fazia estragos por todo lado. Zé do Leite coçava a cabeça descabelada e ria a cotovelos risonhos, sorrindo da própria desgraça…

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