Ainda bem

Via de sempre não sonho. Aliás, como escrevi antes a noite me faz ter pesadelos. Tenho medo dela. Pois, em criança, quantos anos fazem, ao dormir como um anjinho na roça de umas tias avós, havia um primo levado, anos adiantados a mim, que vestia um lençol meio desbotado e nos fazia perder o sono com aquele assombração de mentirinha. E outros iguais a mim deixavam na cama limpinha a marca dos seus medinhos. Sob a forma de uma mancha amarela, chamada xixi.

Ao crescer, deixando a criança me abandonar para ceder lugar a um adulto ancião, que ainda pensa que os anos não passaram, brinco com meu neto primeiro como se fosse um igual, a noite da mesma maneira evito-a. Se pudesse e minha vontade ditasse meus ditames transformaria as noites em dias iluminados, mesmo no caso se uma chuvinha mansa afagasse meus sonhos pueris.

Sonhar é, na minha não ilustre lucubração, fatos e coisas de quem pensa construir castelos na areia e logo vem uma ondinha do nada e colhe o tal castelo lindo e o faz esboroar. Sonhar é pensar durante o sono. E quem tem um cadinho de sono, quase nada, para que perder tempo a antever delírios imaginosos? E muitos desses sonhos viram pesadelos. Que podem um dia se consumarem.

Desde há mais de um ano atrás, exatos ano e meio, tenho sonhado ter uma casa beira lago. Na simpática Ijaci rural.  A minha outra morada, que sempre ficava vazia, a casa Amarelazul, hoje é ocupada pelo amigo Roberto e sua família linda.

Foram tempos duros durante a edificação daquele sonho em forma de blocos de cimento, argamassa, janelas de alumínio, feitas em vidros quadradinhos, cômodos espaçosos, claros, que tanto recebem a luz do sol quanto da lua quando ela ocupa a noite; uma cozinha ampla dotada de um fogão a lenha e uma churrasqueira ambos virgens de fogo resultado de achas de lenhas queimadas de véspera, três banheiros. Um no andar de cima. Onde tenho meu quarto, três ao lado, um deles vai ser a biblioteca cheia de livros meus, uma mesinha onde vai estar meu note, todos as cinco dependências ligadas ao andar de baixo por uma escada suave como a luz da lua que adentra noite mansa em minha morada. Que recebeu, no dia de ontem, a primeira leva de amigos para a inauguração festiva. O Solar Paulo da Rosa foi assim batizado pela parceria longa que temos, eu e Rosa mulher, que foi a arquiteta principal da casa nossa.

Fazia sol no dia de ontem. A casa elevada, acima do plano do olho mágico da represa do Funil, pode ser vista por quem passa navegando pelo lago meio verde, barrento nos dias de chuva pesada. E pode causar inveja aqueles passantes que não têm como morar num lugar lindo como ele. Talvez seja esta a razão de terem roubado meu barco tosco parcamente atado por correntes logo ali.

O almoço foi farto e saborosamente apetitoso. Foram responsáveis pela qualidade ímpar minha Rosa, Ângela minha companheira ijaciense, que comigo desfruta forte amizade há anos e anos vindos. E a mulher de um pintor faz tudo. Uma morena jambo, dotada de bons dotes culinários e prendas domésticas irrefutáveis.

A noite passada no Solar foi maravilhosa. Pena que estávamos tão fatigados pela arrumação tardia, naquele ajeita mobílias, guarda utensílios domésticos, limpeza de última hora, cuidados com meu cão Del Rey, tudo isso ansiosamente esperando amigos que de Lavras vinham e dali mesmo. Roberto e sua turma foram os mais festejados pela ajuda que emprestaram desde o começo da obra.

Naquela véspera de inauguração quase não consegui conciliar os olhos com as pálpebras pesadas. Era antes da seis quando deixei a cama em direção ao banheiro do andar superior.

Minha intempestiva esposa me acompanhou com sua pressa em deixar tudo de acordo com a importância da ocasião.

Ela se desdobrava entre a cozinha, fazer o café matinal, ajeitando o fogão a gás, o a lenha iria ficar para uma próxima vez. A churrasqueira ainda não tinha prazo definido para acontecer.

Finalmente os convivas chegavam. Um a um os carros paravam na pequena praça retorno feita um pouco antes. Sorte não estar chovendo naquele dia três de fevereiro. Alguns dos convidados erraram o caminho. Também era a primeira vez que ali passaram.

Tião, outro nome do amigo Assis, sua esposa Cida, Renato e sua outra Cida, minha sogra imorrivel, ela em breve vai chegar aos cem. O pintor faz tudo e sua família atual. De nome Clodoaldo. Meu filho, sogra, uma gaúcha que costuma ler meus textos um a um, minha norinha biscuit, que em breve, tomara sua gestação seja feliz, vai me fazer presente de mais um neto, prefiro inha, mas se for inho vai ser regiamente bem vindo. Junto a eles veio Theo, com seus modos não bem comportados, que roubou a cena com seus folguedos infantis. Era lindo ver o Theozinho andar a cavalo, nos bracos de sua mãe, minha pequena jornalista aposentada prematuramente da sua arte.

Logo chegou, apressado como sempre, meu genro Daniel. Pouco tempo ele ficou entre nós. Levou meu neto de volta. Da próxima irei sequestrá-lo. E segurá-lo no Solar, por quanto tempo eu quiser.

Na noite véspera do dia de ontem, depois de entregar meu corpo exausto ao colchão macio, pela vez primeira tive um sonho.

Sonhei que uma onda gigante veio do lago do Funil. Não sei se por influência daquele filme onde um tsunami invade uma praia paradisíaca. Foi tão real que me senti molhado. Que o Solar esboroou-se todo. Não restando tijolo sobre tijolo. Pedra sobre argamassa. Todas as janelas estavam estilhaçadas. Dos banheiros nada restavam. Da pobre cozinha ampla nem a trempe do fogão salvou-se da destruição fatal.  A churrasqueira foi reduzida a carvão. O canil do Del Rey foi o único que escapou ao terremoto aquífero daquela noite chuvosa, onde raios riscavam o ar, trovões ribombaram por todos os lados.

No dia seguinte ao dilúvio vacas nadavam perdidas naquele oceano de água doce. Nem o leite de suas tetas foi aproveitado. Os infelizes bezerrinhos berravam de saudade das mães.

Acordei no dia de ontem, três de fevereiro, com uma estranha sensação de sonho não consumido. Nem mesmo consumado foi.

O Solar Paulo da Rosa estava intacto. Mais lindo ainda. Pássaros soltos cantavam reverenciando o nascer do sol.

Ainda bem que tudo não passou de um sonho ruim. Ainda melhor que não sonho. Caso sonhasse tanto, não sei o que seria de mim.

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