O homem que contava horas

Agora é exatamente sete da manhã. Deixei a cama em imprecisas seis. Dormi pouco. Como de costume. Acho passar oito horas do dia deitado numa cama macia um desperdício. Sobremodo para quem viveu sessenta e oito anos. E nem de longe imagina quantos meses, dias, anos, minutos e segundos ainda nos restam.

Um tio meu, por parte de pai, Abreu, vive hoje quase cem anos. Ele mora na prorrogação da vida. Não creio que ele conte as horas que já viveu. Nem ao menos os dias que ainda faltam para existir.

No meu caso, aos mais de sessenta e oito anos, já passei por tantas horas que nem me atrevo a contá-las. Seria enfadonho ficar aqui, escrevendo sempre pelas manhãs tempranas, que nasci num dia sete de dezembro de um mil novecentos e quarenta e nove. Na vizinha Boa Esperança. A hora exata não declino. Quem saberia dizer não mais está aqui. Minha querida mãe se despediu da gente num fatídico dia do ano preciso dois mil e cinco. O mês quando aconteceu esqueci-me do dia e da hora exata. De novo fico aqui contando horas. O fato é que foi extremamente doloroso para mim acompanhá-la em seus instantes finitos.

Há inexato um ano e meio comecei a construir uma casa beira lago. Sei com exatidão que foi num outubro perto.

Ainda me lembro dos seus primeiros buracos que iriam ser seu alicerce. Pedra sobre pedra ali fincadas. Depois foram os blocos alinhados um a um. A seguir as paredes foram erguidas com certa rapidez. O primeiro andar logo se fez alto. Já o segundo tardou um pouco mais. Pois, no alto das paredes existiam as ferragens para segurança. Os buracos das janelas eram deixados lado a lado. Findas as paredes do segundo andar restava a cobertura. Um lindo telhado amarronzado ali foi edificado. Para impedir que as águas da chuva entrassem casa adentro. E eu ficava contando as horas para a casa ficar pronta. E eu poder morar aos finais de semana junto a alguém que apreciasse o silêncio do nada, o cantarolar dos passarinhos, o farfalhar de asas dos morcegos atrevidos, a azáfama das maritacas tentando se aninhar no telhado, o ladrar do meu cão pastor, um guardião confiável do meu logradouro tão sonhado.

E eu passava horas para chegar os sábados, por vezes ia ao meio da semana para ver a quantas andava a obra. O serviço dos obreiros me apaixonava. E eu tentava empunhar a colher sem muita capacidade. Fazer massa então, nem de longe sonhava.

E pouco a pouco, cadinho a cadinho, o acabamento em massa se via pronto. As janelas definitivas paulatinamente permitiam ver por onde entrava a luz do sol, o disco amarelo ouro da lua cheia, e o silvo lindo do assobio dos canarinhos da terra que faziam ninho na trave do telhado da varanda imensa.

E eu permanecia contando as horas de ali passar a primeira noite, que aconteceu num dia perto, apenas eu e eu, nada mais restava.

Naquele dia depois feito noite nem havia um cama perfeita para recostar meu corpo exausto. Fingi dormir num colchonete imperfeito ali deixado por um pintor amigo. Ele sim, e outro pedreiro, passaram noites e dias nos seus trabalhos tão importantes. Sem eles não teria teto. Nem quartos. Nem cômodos de banho. Muito menos cozinha. Ou a linda varanda onde se deixa ver as águas plácidas da represa do Funil.

Uma vez a casa pronta, não parava de contar as horas. Afinal foram tantas e tantas horas, cumulados dias, mais de um ano inteiro, para ver o fim da construção que tanto me apaixonava.

Não via o desenrolar das horas da inauguração chegar. Afinal, esta casa no campo, onde um dia irei receber amigos, gente simples do lugar, dar risadas no rabo do fogão a lenha e dele ver as chamas crepitarem acesas, trocar prosa amistosa, dar uma voltinha no barco a motor que se move sem gasolina, tirar da rede armada de véspera alguns peixes que se deixarem prender, dar voltas em cavalos ali já selados previamente, brincar com meu cão pastor, levá-lo a passear com sua guia ao pescoço grosso, ver vacas a pastejarem bucolicamente, assistir ao pássaro preto ser cuidado por um insignificante tico- tico, que pensa ser seu pai ou mãe. E outros encantamentos mais que passarinho horas e horas tantas, que não me dou conta de quantas são.

Eu em verdade estou contando as horas para que o dia de amanhã desperte com este céu azul que domina o firmamento neste dia dois de fevereiro. Conto tanto as horas, que nem as imagino quantas serão.

Deixe uma resposta